por Reverendo Shinkyo Warner

 

Por que necessitamos de ensinamentos expedientes?

O Sutra do Lótus é um livro difícil. Podemos não perceber como o Sutra pode melhorar nossas vidas ou resolver os problemas do mundo. O Sutra não contém mandamentos de como viver. Também não contém respostas explicitas para nossos problemas atuais tais como: poluição, guerra, racismo, pobreza, violência ou desespero.

Em vez disso, o Sutra do Lótus nos oferece histórias e uma promessa. As histórias são sobre como o Buda nos transmite sua sabedoria suprema que é o mesmo estado de iluminação que ele alcançou após abandonar o luxo do palácio do seu pai. A promessa é que independente de todas as dificuldades que temos agora, independente de todo medo, caos e confusão no mundo, nós iremos nos tornar Budas tal como ele se tornou. Estejamos ou não conscientes de sua presença, o próprio Buda está sempre conosco, conduzindo nos ao despertar.

Para muitos de nós, é difícil acreditar nesta promessa. Queremos saber:  Por que não posso alcançar a iluminação agora? Por que o próprio Buda não apenas muda o mundo e se livra de todos os nossos problemas para nós?

As respostas para estas questões estão no Sutra do Lótus. Uma ideia que encontramos no Sutra é que tudo o que o Buda ensinou antes deste Sutra foi um recurso. O Sutra do Lótus foi o primeiro ensinamento que continha a sabedoria verdadeira do Buda. A razão dele ter usado de ensinamentos expedientes antes foi porque ele precisava preparar as pessoas para entender sua sabedoria verdadeira, para que elas estivessem prontas para ouvir isso. O que então Buda quer dizer com ensinamentos expedientes? O que nos impede de ouvir sua sabedoria verdadeira?

A princípio, as histórias no Sutra do Lótus podem parecer mais com ensinamentos expedientes. O que é diferente é que as histórias no Sutra explicam os ensinamentos expedientes. Elas mostram o que são ensinamentos expedientes, porque Buda fez uso deles, quais são suas limitações e porque é necessário separá-los.

O Buda usa histórias ao invés de explicações, porque temos capacidades diferentes e experiencias diferentes. Uma mesma explicação não funcionará para todos. No entanto, quando ouvimos uma história, cada um de nós interpreta essa história de modo diferente baseado naquilo que trazemos para ela.

O Buda também afirma que para alguém ouvir sua sabedoria verdadeira é preciso ser um Bodhisattva: um ser que promete ajudar os outros a se tornarem iluminados e melhorar este mundo. Isto não quer dizer que o Buda somente instrui Bodhisattvas. Significa que pelo fato de Buda nos instruir, nós somos Bodhisattvas. Seu ensinamento nos desperta para nossa natureza de Bodhisattvas.

Quando enxergamos os problemas do mundo como meros humanos, tais problemas podem parecer temíveis e insuportáveis. Quando enxergamos os problemas do mundo como Bodhisattvas confiantes, de que em algum momento nos tornaremos Budas, tais problemas então se parecerão como meios para conduzirmos todos os seres ao despertar. Para alguns, isto pode soar como uma ideia maluca. Para outros, é o coração da sabedoria do Buda.

O Sutra do Lótus é adequadamente chamado de “O Dharma para Bodhisattvas”. As histórias estão no Sutra para nos ensinar e para as usarmos quando ajudamos os outros.  A medida que continuamos a ler e memorizar este ensinamento maravilhoso, nós continuamos a aprender como o Buda está guiando nossa prática. Ao nutrirmos as sementes de sabedoria do Buda, nós enxergamos mais nitidamente com os olhos do Buda, que “na verdade este mundo é pacífico”. Ao praticarmos os ensinamentos do Sutra do Lótus, como disse Nichiren: “lendo-o com nossos corpos”, nós mudamos o mundo.

 

Odaimoku nas Ruas

Como parte da Peregrinação do NONA em 2012, prestamos nossos respeitos em um memorial nas ruas de Kamakura, onde Nichiren pregou o Sutra do Lótus. A partir de lá, nos dirigimos para um dos cruzamentos movimentados da cidade segurando alto nosso estandarte Omandala, batendo um tambor uchiwa taiko e entoando Namu Myogo Renge Kyo! Foi incrível seguir as pegadas de Nichiren e cumprir seu desejo de usarmos o Sutra do Lótus para conduzir todos os seres ao despertar.

Durante a tarde em Kamakura, multidões de pessoas comuns circulavam ao nosso redor. Algumas estavam caminhando. Algumas andavam de bicicletas. Outras estavam sentadas em carros e ônibus. Estudantes vinham e iam para a escola. Donas de casa saindo de lojas e indo para casa após comprar alimentos para suas famílias. Funcionários administrativos realizando tarefas. Umas poucas pessoas sorriram para nosso grupo barulhento e nos cumprimentaram com mãos em prece. A maioria, no entanto, apenas olhou brevemente para nós, quando muito, e seguiu com suas rotinas normais.

Enquanto recitávamos, percebi pensamentos que circulavam na minha própria mente. Não havia preocupação alguma se alguém julgou mal o nosso grupo por fazer um espetáculo de nós mesmos com nosso batuque e canto alto. Então novamente, eu não presumi que eles deveriam nos agradecer, muito menos reconhecer ou entender o que estávamos fazendo. Eu apenas sorri e ponderei como foi maravilhoso nossa recitação estar ajudando todas essas pessoas a se tornarem Budas.

No seu Tratado sobre ‘Entoar o Grande Titulo do Sutra do Lótus (Sho Hokke Daimoku-sho)’ Nichiren escreveu: “Você deveria lembrar que a doutrina secreta que salva o maligno, o estúpido e todos aqueles sem a natureza de Buda não está revelada em nenhum outro sutra, exceto no Sutra do Lótus. Esta é a verdadeira razão porque o Sutra do Lótus é superior a todas as outras escrituras budistas”.

Em outras palavras, quando entoamos Namu Myoho Renge Kyo, não precisamos saber da condição das pessoas que nos ouvem. Não precisamos julgar suas mentes ou seus comportamentos para assegurar o que eles podem aprender daquilo que ensinamos. Com o Odaimoku, podemos conduzir qualquer pessoa ao despertar.

Esta passagem também cita algo sobre nós que mantemos e praticamos o Dharma do Buda. O mundo recompensa todos aqueles que são inteligentes, proativos, determinados e talentosos. Escutamos que, a menos que cultivemos estas qualidades, não podemos ser membros produtivos da sociedade.  Se dermos ouvidos ao mundo ao invés do Buda, poderemos acreditar que antes de praticarmos o Dharma Maravilhoso, despertar nossa natureza de Bodhisattva, e não regredir até nos tornarmos iluminados, nós precisaremos obter essas quatro qualidades e assegurar que todo mundo saiba que nós as obtemos. Isto deixa pouco espaço para a humildade ou até mesmo para a curiosidade.

Por outro lado, o Buda afirma que não precisamos de outras qualidades além daquelas que já temos. No Capitulo 28 do Sutra do Lótus, ele proclama: “Quem quer que sustente, leia, recite, memorize este sutra corretamente, entenda seus significados e aja de acordo com o sutra, faz as mesmas práticas que eu faço”.

Praticar como o Buda pratica significa praticar como um ser iluminado. Quando entoamos o Odaimoku, nós estamos sendo iluminados. E estamos iluminando os outros. Mesmo que acreditemos que somos estúpidos, submissos, distraídos ou desajeitados, isso não importa. Mesmo que o mundo nos rejeite porque não correspondemos aos seus padrões, isso não importa.  Nós não precisamos prestar exame de qualificação para praticar o Dharma do Buda. O Buda nos diz para entoar o Odaimoku com confiança e fé assim como somos, contudo, ainda que imperfeitos. Isto já basta.

 

Oferecendo Incenso, Oferecendo nossas Vidas

No seu Tratado sobre ‘Oferecimento Numenal e Fenomenal (Jiri Kuyo Gosho)’, Nichiren escreveu: “Suponha que, durante uma época de fome, haja um homem que oferece ao Buda o único alimento que ele tem para se manter vivo por um dia. Isto é o mesmo que oferecer sua vida ao Buda”.

Neste mundo incerto, somos cautelosos com nossa generosidade. Nós queremos assegurar que teremos o suficiente para prover alimento e abrigo para nossas famílias antes de doarmos qualquer coisa. A ideia de oferecer um dia de comida durante uma escassez de alimentos é assustadora. Mas, como outros pontos do nosso voto como Bodhisattvas, para benefício de todos os seres, dedicar nossa vida preciosa ao Buda é uma meta que podemos aspirar. Na Nichiren Shu, nós temos uma prática que nos auxilia alcançar essa meta.

Toda prática utiliza algo fácil como preparação para algo difícil. Um músico iniciante exercitará escalas e canções simples antes de tentar peças avançadas. Um jovem matemático vai aperfeiçoar aritmética antes de prosseguir para o cálculo. Um Bodhisattva aspirante pode fazer um oferecimento simples como preparação para outros que serão mais difíceis.

Em qualquer templo da Nichiren Shu, há a prática de oferecimento do incenso. É simples e profunda. A pessoa se aproxima de uma mesa com um prato pequeno de incenso em pó e uma tigela contendo um pedaço de carvão em brasa. Após fazer uma reverencia ao Buda, a pessoa apanha uma pitada de incenso do prato e ergue em dedicação ao Buda, segura o incenso sobre o carvão e então o solta. Quando sobe a fumaça do incenso queimando, a pessoa reverencia o Buda novamente e se afasta.

Aprendemos sobre generosidade considerando o que não acontece neste oferecimento. Não nos queixamos da qualidade do incenso. Nós não o vendemos ou guardamos para quando realmente precisarmos dele. Não despejamos todo o incenso sobre o carvão para queimar através dele o mais rápido possível. Não lamentamos a transformação do incenso nem tentamos retornar a fumaça para o incenso. Não esperamos Buda nos dizer que somos pessoas maravilhosas por fazermos o oferecimento. Tudo isto é para dizer:  não nos comportamos como deveríamos em outras situações.

Aprendemos com este ritual que a generosidade não é uma transação comercial. O incenso que oferecemos é um oferecimento puro para nós até que possamos fazer um outro oferecimento puro. Um oferecimento puro não vem atado a cordas, não há expectativas de recompensa nem mesmo de mérito. O oferecimento é um benefício para ambos doador e receptor. Oferecemos incenso para expressar nossa gratidão ao Buda, para demonstrar respeito ao Buda e como exemplo para os outros.

Após dominarmos esta prática, nós podemos estendê-la para outras partes das nossas vidas. Por exemplo: dinheiro. Podemos ponderar sobre o dinheiro que temos e nos perguntar: De onde vem esse dinheiro? Somos gratos por recebê-lo? Ou acreditamos que temos direito nato ao dinheiro? Nós o seguramos o máximo possível com medo de perdê-lo? Ou dedicamos sua utilidade para ajudar outros seres a despertar? Ficamos desapontados quando os resultados da nossa generosidade não atendam nossas expectativas? Ou ficamos seguros em nossa fé que o beneficio que criamos existe independente de admitirmos isso ou não?

A medida que ampliarmos nossa capacidade para a generosidade, perderemos nossa delusão do medo. Ao invés de vivermos em um mundo de escassez, onde cada um está focado em cuidar de si mesmo, ou pior, tentado nos roubar, nos encontraremos numa ilha de abundancia, onde os seres estarão prontos a nos ajudar e nada nos faltará. Enxergaremos o mundo com os olhos de Buda e beneficiaremos o mundo com a sabedoria do Buda.

 

 

(*) Coletânea de artigos publicados no Nichiren Shu New em abril, agosto e dezembro de 2012, traduzidos pela equipe de traduções da Nichiren Shu Brasil em março de 2019.

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