2. De mendigos itinerantes para Ministros casados

Texto do Ryuei Michael McCormick Shonin, soryo da Nichiren Shu nos Estados Unidos, tradução do Shami Guilherme Chiamulera. J=Japonês; Skt=Sânscrito

No discurso conhecido como “Os Frutos da Vida Sem-teto”, o Rei Ajatasattu (skt: Ajatashatru) pergunta ao Buda, “Você pode, Senhor, apontar para uma recompensa visível aqui e agora como um fruto da vida sem-teto?” Em essência, ele perguntava que benefício prático existe em se tornar um seguidor do Buda, no sentido de deixar a vida de pai de família normal com um emprego secular e família, a fim de praticar em tempo integral o Dharma de Buda.

Nesse discurso, o Buda descreve como um chefe-de-família encontra com um Tathagata (isto é, um Buda) e passa a ter fé nele depois de ouvir o Dharma. O discurso descreve a reflexão do chefe-de-família da seguinte forma:

“A vida familiar é fechada e empoeirada, a vida sem-teto é livre como o ar. Não é fácil, vivendo a vida em família, viver a vida santa completamente perfeita, purificada e polida como uma concha. E se eu raspar o meu cabelo e barba, vestir túnicas amarelas e sair da vida em família e sem abrigo!” (Walshe, p. 99)

O chefe-de-família faz isso e torna-se um mendigo sem-teto ou bhikshu na Sangha monástica e assume as regras de condutas conhecida como vinaya. O discurso passa a descrever o estilo de vida do bhikshu em termos mais ou menos amplos (em oposição à explicação detalhada das regras do vinaya do Tripitaka), e como o bhikshu restringe seus sentidos, mantém plena consciência, abandona os desejos mundanos, purifica a mente de vários obstáculos (como má vontade e ódio), alcança estados de profunda concentração meditativa e, finalmente, alcança o nirvana e sabe por si mesmo que “o nascimento terminou, a vida santa foi conduzida, foi feito o que tinha de ser feito, não há mais nada aqui.” (Ibid, p. 108).

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Neste discurso, o Buda deixa claro para o cético questionador, o rei Ajatashatru, o que o estilo de vida de um bhikshu deve ser, e o objetivo final do mesmo. O discurso, e, claro, o vinaya, deixa bem claro que monges budistas ou bhikshus (e por extensão bhikshunis ou monjas) não devem ter famílias, não se envolver em qualquer trabalho produtivo, não estabelecer nenhum lar permanente e viver uma vida de contemplação em tempo integral, enquanto vive de esmolas e se desloca de um lugar para outro, exceto durante as estações chuvosas da Índia.

Antes de passar para as alterações da Sangha que ocorreram no Budismo do Leste Asiático, precisamos lembrar que o próprio Cânone Pali registra que o Buda estava aberto para a adaptação dos preceitos em diferentes situações e, portanto, as mudanças nas regras e regulamentos da Sangha. Por exemplo, uma vez, um discípulo do Buda chamado Katyayana havia retornado para Avanti, sua terra natal, para ensinar o Dharma, mas naquela terra remota ele havia encontrado dificuldades para encontrar o número mínimo de dez monges necessários para ordenar novos monges. Ele também descobriu que alguns dos preceitos estabelecidos pelo Buda eram inadequados para aqueles que viviam em Avanti, onde o ambiente e os costumes eram diferentes dos encontrados nos reinos onde o Buda estava ensinando. Para remediar esta situação, Katyayana enviou um de seus alunos, a quem ele havia ordenado depois de finalmente conseguir encontrar monges suficientes para a ordenação, para encontrar o Buda e perguntar se as regras poderiam ser alteradas para se adequar aos costumes locais e ao seu meio ambiente.

O Buda concordou com isso e afirmou que nos reinos distantes seria doravante permitido, para conferir a admissão completa, apenas cinco monges presentes. Ele também permitiu que os monges usassem sapatos, tomassem banho com mais frequência, usassem peles para se cobrir e uma túnica extra por um longo período de tempo, a fim de se adequar aos costumes locais e ao ambiente mais severo dos reinos mais distantes, como Avanti. Este incidente é importante porque mostra que o Buda permitiu certa flexibilidade nas regras e regulamentos que ele estabeleceu, e que, desde que a integridade do Dharma de Buda não seja prejudicada, a adaptação do Budismo a novas situações seria permitida. Foi este princípio de permitir que os preceitos se ajustem de acordo com os costumes locais e as circunstâncias que permitiriam que o Budismo se transformasse em uma religião mundial.

No Mahaparinibbana Sutta o Buda diz: “Se eles quiserem, a ordem pode abolir as regras menores depois da minha passagem.” (Ibid, p. 270) Infelizmente, nem Ananda nem ninguém teve tempo para pedir ao Buda qual das regras eram menores, e assim, no primeiro Concílio, decidiu-se manter todos os preceitos assim como o Buda lhes tinham conferido. Nenhuma das regras foi designada como menor ou abolida. Por isso, é uma questão em aberto exatamente o quanto de adaptação que o Buda teria permitido.

Quando o Budismo fez a transição para a Ásia Oriental a elite confucionistas ficou escandalizada pelos budistas afirmarem que o caminho mais sublime na vida era abandonar sua família e tornar-se um mendigo. Porque a mendicância itinerante indiana não era nem bem-vindo nem prático na Ásia Oriental, templos budistas, eventualmente, se mantiveram através da agricultura e de outras fontes mais estáveis de renda. O Mestre Ch’an Baizhang Huaihai (720-814) conhecido pela autoria das regras monásticas de Ch’an ou Zen Budismo supostamente teria dito: “Um dia sem trabalho é um dia sem comer” (Ferguson, p. 79) na ocasião em que os discípulos esconderam suas ferramentas agrícolas porque temiam que o seu velho mestre estava precisando de um descanso. O mendigo itinerante indiano assim tornou-se proprietário de terras do Leste Asiático e um monge trabalhador agrícola.

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Além disso, de acordo com Kenneth Ch’en, muitos poucos “monges budistas” eram na verdade bhikshus totalmente ordenados. Na China do período T’ang, ordenação significava se tornar um ‘shramanera’ ou “novato”, que recebeu apenas dez preceitos para ‘shramanera’. “Normalmente, o passo seguinte seria prosseguir em direção ao estágio de bhikshu ou monge, mas na China a maior parte preferiu permanecer como ‘shramanera’. Apenas aqueles com grande ambição ou aqueles que foram importantes personalidades se tornaram monges passando pelo upasampada ou ordenação completa“(Ch’en, p. 247). Houve de fato mestres do vinaya na China, mas ao que parece o Budismo da Ásia Oriental como um todo nunca foi totalmente comprometido com a reprodução do estilo de vida exato e as funções da Sangha budista da Índia.

O Japão especialmente nunca esteve confortável com a implementação do Vinaya. O mestre do vinaya chinês Chien-chen (J. Ganjin 688-763) trouxe a revisão Dharmaguptaka dos preceitos encontrados no Vinaya em Quatro Partes (cap. Ssu fen lu; J. Shibun ritsu) para o Japão no ano 753 depois de muito sofrimento e tribulações (11 anos de cinco tentativas frustradas de atravessar para o Japão antes da sexta viagem bem sucedida e durante esse tempo Chien-chen tinha se tornado parcialmente cego e trinta e seis de seus companheiros tinham morrido devido a naufrágios, ataques de piratas e outras dificuldades). A corte imperial japonesa e o clero budista tinha procurado avidamente esta transmissão de Chien-chen, para que pudessem reivindicar uma transmissão legítima dos preceitos. E, no entanto, as coisas não funcionaram como previsto. Daigan e Alician Matsunaga resumem o que ocorreu:

“Infelizmente, no momento em que Ganjin chegou, o governo ritsuryō já havia formulado algumas ideias definitivas de seu próprio interesse sobre o comportamento sacerdotal ideal, que foram apoiados por alguns monges mais velhos que serviam como funcionários do governo. Era natural que Ganjin presumisse que depois de todas as dificuldades que ele havia experimentado em alcançar o Japão a pedido expresso do governo, que ele deveria ser o único responsável por questões relacionadas com a ordenação. Aos olhos do governo, por outro lado, Ganjin pode ter sido um grande mestre vinaya, mas ele não era bem informado a respeito tanto da língua quanto da situação do Japão. Um sistema japonês de ordenação já havia sido planejado e agora a presença de Ganjin era visto principalmente como uma formalidade para cumprir os requisitos budistas ortodoxos. Se um candidato à ordenação recebesse sanção do governo, nenhuma necessidade foi visualizada para o tipo de formação considerada necessária por Ganjin; assim, desde o início, a relação entre Ganjin e o governo foi forçada. Em 758, Ganjin renunciou ao cargo de um funcionário do Sogo (Departamento de Sacerdotes) e colocou seu discípulo Hosshin encarregado de ordenações oficiais. O Zoku Nihonji diplomaticamente deu razão para a aposentadoria de Ganjin, dizendo que ele achou os assuntos políticos confusos para sua idade avançada (ele tinha 71).” (Matsunaga, p. 51)

A corte imperial no Japão não foi de todo interessada em importar um sistema em que mendigos itinerantes vagariam pelo país pregando o Dharma para todos, sobrevivendo de esmolas dadas pelos cidadãos e meditando na floresta. Pelo contrário, o caso era que o Budismo era visto como algo que poderia servir ao Estado. A partir do período Asuka (552-710), o Budismo foi patrocinado por nobres, como o clã Soga e depois estabelecido como a religião do Estado pelo príncipe Shotoku, porque serviu como um veículo para trazer a alta cultura da China e mais remotamente da Índia, e assim suas formas mais sofisticadas de oração, rituais esotéricos e pelo apelo para a proteção e bênçãos dos budas, bodhisattvas e divindades protetoras, poderia trazer saúde, riqueza e felicidade para os governantes e para a nação. Na verdade, era mesmo ilegal tentar difundi-lo entre as pessoas comuns, e os monges e monjas eram restritos ao serviço dentro dos templos e eram vistos como uma parte da burocracia aristocrática. Novamente, os Matsunagas fornecem um resumo prático:

“Para todos os efeitos práticos, o Budismo no período Asuka funcionava como um instrumento mundano das classes dominantes. Em outras palavras, ele foi utilizado como uma forma superior de magia e xamanismo para reforçar o papel da família imperial e da aristocracia. Antes da introdução do Budismo, a fé indígena tinha usado orações, adivinhação e outras práticas, como forma de se relacionar com as forças da natureza que se acreditava serem kami. Quando o Budismo entrou na sociedade, no início foi imediatamente visto como uma outra forma de magia, na verdade, uma variação mais potente, tendo em vista a sua aceitação por poderosos vizinhos continentais civilizados do Japão. As imagens budistas, não tendo nenhuma contrapartida na fé nativa, eram vistos com temor e ganharam popularidade entre certas facções da corte como tendo poderosa eficácia em promover a prosperidade material, a cura da doença e proteção contra calamidades… Neste período se acreditava que a própria imagem possuía poderes e o significado filosófico tendeu a ser desconsiderado.” (Ibid, p. 17)

O Príncipe Shotoku (574-622) aceitou o Budismo como religião do Estado. Ele até incorporou o Refúgio Tríplice no Buda, Dharma e Sangha na primeira constituição japonesa. Dois anos após sua morte, em 624, a imperatriz Suiko instituiu um Departamento de Sacerdotes (J. Soga), a fim de supervisionar a Sangha e evitar má conduta de monges e monjas. Em 645 as Reformas Taika foram iniciadas a fim de criar um governo centralizado, modelado após a dinastia Tang chinesa. Isto incluiu a criação de um código de direito civil e penal conhecido como o código ritsuryō, a primeira versão do que foi promulgado em 701. O código Ritsuryō incluiu regras e regulamentos que regiam os monges e monjas budistas conhecidos como o código Soniryo. Desta forma, o Budismo tornou-se uma parte oficial da burocracia imperial japonês. No período Nara, o Imperador Shomu (r. 724-749) instituiu um sistema de templos nacionais para a proteção da nação em 741, que culminou com a criação do Todai-ji em 757. Kazuo Kasuhara em “A História da Religião Japonesa” fornece um útil relato de como isso foi feito e os motivos por trás disso:

“Depois de cerca de 730 d.C., as relações com o reino coreano de Silla tornaram-se tensas. Ano após ano, elas pioraram, e a corte começou a temer uma invasão vinda da península coreana. Além disso, uma doença epidêmica, possivelmente a varíola, que havia estourado em Tsukushi, em Kyushu, em 735 começou a se espalhar por todo o Japão ocidental. Em 737 a doença chegou a Nara, onde fez muitas vítimas entre a aristocracia, incluindo o Ministro Fujiwara no Muchimaro (680-737) e seus três irmãos. Em março de 737, com o país devastado por crises, em casa e no exterior, o Imperador Shomu (r. 724-49) decretou que cada província deveria fazer imagens de Buda Shakyamuni e dois atendentes, bem como uma cópia do Daihannya-kyo (Sutra Grande Perfeição da Sabedoria, em skt: Maha Prajnaparamita-Sutra). À luz da turbulência da época, fica claro que a intenção do decreto de Shomu não era simplesmente incentivar o Budismo no Japão, mas também contar com o Budismo no esforço do estado de superar as crises que enfrentava. Em 740, Shomu ordenou que cada província fizesse dez cópias do Sutra do Lótus e construísse um pagode de sete andares. Em março do ano seguite, ele ordenou que cada província erguesse outro pagode de sete andares e fizesse dez cópias cada do Sutra da Luz Dourada e do Sutra do Lótus. Além disso, uma cópia do Sutra da Luz Dourada transcritas em tinta de ouro pelo próprio imperador, para ser colocado em cada pagode com orações a vários budas para a proteção da nação.

Finalmente, dois templos provinciais (Kokubun-ji) estavam a ser erguidos em cada província: um mosteiro (Kokubun-ji) a ser chamado Konkomyo Shitenno Gokoku no Tera (Templo para buscar a proteção da Nação pelos Quatro Reis Celestiais, abrigando uma cópia do Sutra da Luz Dourada) e um convento (kokubunni-ji) a ser chamado Hokke Metsuzai no Tera (Templo para a Eliminação de pecados através do Sutra do Lótus, que abriga uma cópia desse Sutra). Este decreto de 741 estabeleceu o sistema de templo provincial. O Sutra da Luz Dourada promete que quatro reis celestiais irão proteger a nação e as pessoas que fizerem reverência e propagar este Sutra. Os reis celestiais defenderão dos inimigos dos soberanos e darão prosperidade e felicidade aos devotos do Sutra do Lótus. O Sutra da Luz Dourada havia há muito sido estimado na China como um poderoso protetor espiritual da nação contra calamidades. O Decreto imperial de Shomu menciona especificamente os destinatários das bênçãos do Sutra.

Orações foram oferecidas para a felicidade eterna dos espíritos dos imperadores falecidos e funcionários leais de Fujiwara e outras grandes famílias; para a felicidade e o bem-estar do imperador reinante e de sua família e dos Fujiwara, Tachibana e outros grandes clãs; e para a derrota e destruição de súditos maus e rebeldes. Claramente os templos provinciais não foram destinados principalmente como locais para a prática religiosa que levam à iluminação e salvação. Eram instituições comprometidas com a proteção do Estado e a prevenção de calamidade nacional por meio dos poderes quase mágicos do Budismo. O sistema de templo provincial não pode ser idealizado como um modelo de realização de cultura budista durante o reinado de Shomu.” (Kasuhara, pp 65-66)

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Tendo em conta que o Budismo foi aceito no Japão não por respeito à instituição da Sangha de Buda, como um conjunto de mendigos que buscam a libertação do nascimento e da morte, mas pela eficácia mágica que se esperava que as cerimônias budistas fossem fornecer ao estado, não deve ser surpreendente que, em pouco tempo os preceitos Dharmaguptaka foram declarados Hinayana* e, portanto, obsoletos.

Saicho (767-822), o fundador da escola japonesa Tendai do Budismo, foi quem iniciou o movimento que se distanciou das chamadas tradições vinaya Hinayana*. Após a chegada de Chien-chen, o governo japonês sancionou três plataformas de preceito (J. Kaidan) para a recepção dos preceitos monásticos em meados do século VIII. A fim de se juntar à Sangha, os candidatos teriam que ir a uma dessas três plataformas oficiais de preceito, a fim de se refugiar nos Três Tesouros e aceitar os preceitos Dharmaguptaka. Saicho, no entanto, acreditava que era inconsistente para budistas Mahayana terem que cumprir preceitos Hinayana*. De acordo com Saicho, budistas Mahayana devem aceitar os 10 maiores e 48 menores preceitos do Bodhisattva do Sutra da Rede de Brahma (Ch. Fan Wang Ching), um Sutra que foi supostamente traduzido por Kumarajiva. O clero conservador das escolas mais antigas do Budismo Japonês se opuseram a isso porque queriam manter o controle sobre as ordenações de monges budistas, mas os esforços de Saicho finalmente deram frutos após sua morte em 822 d.C. De acordo com Paul Groner:

“Os preceitos de Fan Wang foram um conjunto de regras Mahayana compilados na China no século V. Eles eram muito populares na Ásia Oriental e, muitas vezes conferidos a leigos, a fim de fortalecer seus laços budistas. Chien-chen os usou desta forma quando ele apresentou as ordenações Fan wang pouco depois de sua chegada ao Japão. Além disso, os preceitos Fan Wang também foram conferidos a monges e monjas, para não dar-lhes o status de monges e monjas, mas para reforçar a qualidade Mahayana de suas atitudes e práticas. A maioria dos monges não via conflito entre a ordenação completa da recepção do Ssu fen lu (upasampada) e então receber a ordenação Fan wang.” (Groner, p. 9)

Saicho reverteu isso. Para seus próprios noviços Tendai, ele desejou que tomassem os preceitos do Sutra da Rede de Brahma primeiro, e depois treinar por doze anos no Monte Hiei como monges Bodhisattva. No final dessa formação que poderia, então, receber os preceitos Dharmaguptaka tomados pelos outros monges e monjas no Japão naquela época. Isso iria resultar em duas coisas: 1. Iria remover os monges Tendai da supervisão do Sogo (Departamento de Monges) e 2. Garantir que os monges Tendai fossem completamente Mahayana em seus pontos de vista e aspirações, e não se voltaria à pontos de vista e aspirações mais limitados do Hinayana*, tomando preceitos Hinayana* durante a sua formação inicial. A permissão para construir uma nova plataforma de preceito no Monte Hiei, o templo principal da escola Tendai de Saicho, para a transmissão dos preceitos Mahayana do Sutra da Rede de Brahma, foi finalmente concedido pelo governo após a morte de Saicho. Após sua construção, em 827, os preceitos do Mahayana do Sutra da Rede de Brahma, tornaram-se o padrão de conduta para quase todos os budistas japoneses.

O plano de Saicho de ter monges Tendai vivendo de acordo com o estilo de vida e objetivos enunciados no Sutra da Rede de Brahma e também de acordo com o estilo de vida e os regulamentos do vinaya Dharmaguptaka não se tornou uma realidade. Por muitas razões que Paul Groner discute em seu livro sobre Saicho, os monges Tendai nunca adotaram o vinaya Dharmaguptaka. Na verdade em algum momento entre 823 e 828, e novamente em 877 a corte realmente emitiu decretos que proibiam os monges Tendai e os monges de Nara de transmitir os preceitos entre si. A partir desse momento, os monges Tendai do Japão receberam apenas preceitos do Sutra da Rede de Brahma.

Mesmo estes foram vistos como obsoletos por gerações posteriores de monges Tendai. “Vários séculos depois da morte de Saicho, um movimento começou na Escola Tendai para tirar a ênfase do papel dos preceitos Wang Fan em favor dos preceitos mais flexíveis e subjetivos do Sutra do Lótus.” (Ibidem, p. 205) Os monges budistas japoneses estavam basicamente tentando encontrar um conjunto de preceitos ou, melhor ainda, um único preceito que fosse ao mesmo tempo mais profundo e menos exigente e, portanto, mais flexível.

Parte da razão para este desconforto com os preceitos era que se acreditava que as pessoas já não eram capazes de viver de acordo com os códigos específicos de conduta, seja chefes de família ou monges, porque a Era dos Últimos Dias do Dharma (J. Mappo) tinha chegado. De acordo com as “profecias” dadas pelo Buda (no Cânone Pali e nos Sutras Mahayana), haveria um período de declínio no ensino e na prática do Dharma de Buda após a morte do Buda. O primeiro período seria a Era do Verdadeiro Dharma, que duraria por 500 ou 1000 anos (dependendo do texto de origem), durante o qual seria possível ouvir o Dharma, praticá-lo e alcançar a liberação. Isto seria seguido pelo período da Aparência do Dharma por mais um período de 1.000 anos durante os quais seria possível a prática, até certo ponto, mas liberação final já não seria possível. Em seguida, a Era dos Últimos Dias do Dharma começaria, período em que até mesmo a prática se tornaria corrompida. De acordo com um ensaio atribuído a Saicho chamado “A luz dos Últimos Dias do Dharma” (J. Mappo Tomyo ki), na Era dos Últimos Dias, não seria mais possível encontrar monges puros de modo que se deve respeitar e apoiar aqueles com o título de “monge”. “A luz dos Últimos Dias do Dharma” diz:

“No entanto, o ponto em discussão aqui diz respeito ao fato de que nos Últimos Dias do Dharma, existem apenas bhikshus no nome. Estes bhikshus são os verdadeiros tesouros do mundo. Não há outros campos de mérito, onde se podem plantar méritos. Além disso, se alguém guardar os preceitos nos Últimos Dias do Dharma, isso seria extremamente estranho. Seria como um tigre no mercado. Quem iria acreditar?” (Rhodes, p. 9)

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Esse tipo de pensamento foi muito influente do século XII adiante. A ideia foi apresentada com Honen (1133-1212), de que já não se podia alcançar a libertação por meio de práticas budistas convencionais ou observância dos preceitos, mas apenas através da total dependência do poder salvador do Buda Amitabha. Em 1175, com a idade de 42, Honen encontrou uma passagem no Comentário de Shan-tao sobre o Sutra da Meditação sobre o Buda da Vida Infinita que sentiu que esclarecia todas as suas dúvidas sobre a forma de atingir o estado de Buda na Era dos Últimos Dias do Dharma. A passagem afirma que se deve simplesmente cantar o Nembutsu, Namu Amida Butsu, única e exclusivamente em todos os momentos, e que esta era a prática de acordo com o voto original ou 18º voto, do Buda Amitabha. Isto tornou-se a inspiração para a insistência de Honen sobre a prática exclusiva do Nembutsu. Ele começou a ensinar a todos que quisessem ouvir sobre a prática exclusiva do Nembutsu que, ele insistiu, poderia salvar todas as pessoas na Era dos Últimos Dias do Dharma. De acordo com Honen, todas as pessoas, sem qualquer qualificação, exceto a fé em Amitabha Buda, poderia tornar-se seguro do renascimento na Terra Pura.

Nem todo mundo ficou impressionado com os ensinamentos de Honen. A crescente popularidade do movimento de Honen e os excessos de alguns de seus seguidores angustiaram particularmente os monges de Enryakuji no Monte Hiei. Em 1204 eles pediram ao Imperador Gotoba (1180-1239) para que o movimento do Nembutsu exclusivo de Honen fosse suprimido. Os monges Tendai ficaram especialmente perturbados com as tendências antinomianas dos discípulos de Honen chamados Gyoku e Junsai (aka Anraku). Gyoku havia alcançado notoriedade, ensinando que basta dizer o Nembutsu uma vez, a fim de ser salvo, e que qualquer prática além dessa era supérflua. Junsai tinha a reputação duvidosa de ser o monge mais bonito do Japão e era bastante popular com as senhoras da nobreza de Quioto. Honen e seu movimento tinha a simpatia de muitos na Corte, de forma que nenhuma ação foi tomada contra ele ou seus seguidores naquela época. Honen pessoalmente repudiou a doutrina de “recitar apenas uma vez” e supostamente expulsou Gyoku. Ele também refutou a ideia de que, confiando no Nembutsu se poderia continuar a se envolver em delito. No entanto, ambas as ideias pareciam estar implícitas nos ensinamentos de Honen sobre o poder salvador de uma única recitação do Nembutsu. A fim de controlar os excessos de alguns de seus discípulos, Honen os fez assinar um documento com sete compromissos. Isso, no entanto não impediu os abusos e excessos. Também não sufocou as críticas das escolas budista estabelecidas.

Em 1205 uma nova petição solicitando a supressão de Honen e seus discípulos foi apresentado ao Imperador aposentado Gotoba (ele se aposentou no ano anterior) do templo Kofuku-ji. Mais uma vez, a corte imperial não fez nada. Infelizmente, a indiscrição de dois de seus monges, Juren e o já mencionado Junsai, provocou uma nova crise em 1206. Enquanto o aposentado Imperador Gotaba estava em uma peregrinação ao santuário Kumano, estes dois monges passaram a noite no palácio a convite de algumas damas da corte, duas das quais foram ordenadas sem permissão. Não é certo que qualquer coisa desagradável tenha ocorrido, mas monges pernoitarem no palácio e ordenarem damas da corte, sem qualquer supervisão ou permissão, era um escândalo muito grande para se ignorar. Os inimigos do movimento Terra Pura finalmente conseguiram o que queriam em 1207 quando a corte ordenou a execução de Juren, Junsai, e dois outros discípulos, e a laicização seguida pelo exílio de Honen e sete de seus discípulos. Graças aos seus amigos influentes, como o ex-regente Kujo Kanezane, o exílio de Honen foi relativamente suave. Ele foi enviado para a província de Tosa, na ilha de Shikoku e antes do final do ano ele foi perdoado. Ele não foi autorizado a voltar para a capital, no entanto, e por isso ele viveu nos arredores de Osaka por quatro anos. Em 1211 ele foi autorizado a voltar para Otani em Kyoto, onde morreu no ano seguinte, em 1212.

Shinran (1173-1262), o fundador do Jodo Shinshu, foi um discípulo de Honen que colocou em prática as implicações lógicas da abordagem da “fé-somente” do Budismo Mahayana que evitou a necessidade de preceitos ou da prática monástica. Ele estava entre os exilados, em 1204. Desde o século XVI a Jodo Shinshu tornou-se a mais poderosa e influente de todas as escolas da Terra Pura e uma das maiores de todas as escolas do Budismo japonês até hoje. É a Shinran que pode ser creditada a criação da primeira linhagem clerical budista abertamente casada no Japão. Quando ele foi exilado, ele foi excomungado e a partir desse ponto em diante, ele tomou o nome de Gutoku Shinran e declarou que ele não era nem monge nem leigo. Em seu posfácio ao seu magnum opus a Ensinamento, Prática, Fé e Realização (J. Kyogyosho) ele escreveu sobre sua visão da eficácia superior do caminho da Terra Pura, o exílio de seu mestre Honen (que é chamado de Genku), e sua excomunhão pela corte e seu novo status:

“Refletindo dentro de mim, vejo que nos vários ensinamentos do Caminho dos Sábios, a prática e iluminação morreram há muito tempo, e que a verdadeira essência do caminho da Terra Pura é o caminho para a realização agora vital e florescente.

Monges da tradição de Sakyamuni em vários templos, no entanto, não têm uma visão clara sobre o ensino e ignoram a distinção entre o verdadeiro e o provisório; e estudiosos dos clássicos chineses na capital estão confusos sobre as práticas e totalmente incapazes de diferenciar os caminhos certos e errados. Assim, monges eruditos de Kofuku-ji apresentaram uma petição ao imperador aposentado na primeira parte do segundo mês, 1207.

O imperador e seus Ministros, agindo contra o Dharma e violando a retidão humana, tornou-se furioso e amargurado. Como resultado, Mestre Genku – o fundador eminente que permitiu que a verdadeira essência do caminho da Terra Pura se espalhasse vigorosamente [no Japão] – e um número de seus seguidores, sem qualquer discussão sobre seus [supostos] crimes, foram sumariamente condenados à morte ou foram despojados da vida monástica, receberam nomes [seculares], e foram enviados para desterro distante. Eu estava entre os últimos. Por isso, agora estou nem um monge nem na vida mundana. Por esta razão, tomei a termo Toku [“de cabelos raspados”] como o meu nome. Mestre Genku e seus discípulos, sendo banidos para as províncias, em diferentes direções, passou um período de cinco anos [em exílio].” (Hirota, p. 289)

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James Dobbins, em seu estudo sobre o Jodo Shinshu, apontou o seguinte sobre o nome de “Toku”: “O Shasekishu (“Areia e Cascalho”) indica que o termo foi usado para se referir aos monges que haviam ‘quebrado os preceitos sem qualquer remorso’ (hakai muzan). Shinran, sem dúvida, assumiu esta alcunha desonrosa como um reconhecimento público de seu status. Portanto, é provável que Shinran tenha se casado em algum momento entre 1204 e 1207.“(Dobbins, pp 26-27) Dobbins afirma que a razão pela qual Shinran foi exilado junto com Honen era porque ele tinha ostentado abertamente seu casamento e isso foi usado contra ele, apesar de muitos monges daquela época já estarem envolvidos em casamentos secretos ou relacionamentos sexuais de um tipo ou outro. Shinran pode ter sido casado até três vezes, mas é certo que ele tinha pelo menos uma esposa, Eshinni, e que ele tinha, pelo menos, quatro e até seis filhos com ela. Este foi o início da linhagem Jodo Shinshu de clérigos casados e o precedente para o clero abertamente casado no Japão, embora as outras escolas de Budismo japonês não seguissem o mesmo caminho até o período Meiji (1868-1912).

Antes de discutir o período Meiji e sua secularização do clero budista japonês, é importante entender o papel do Budismo japonês durante o período Edo (1603-1868) sob o xogunato Tokugawa. Muitas das tradições e regras do Budismo japonês são legados desse período, mas as mudanças radicais do período Meiji também foram uma reação ao Budismo da Era Edo. A instituição mais importante criada pelo xogunato Tokugawa foi o sistema danka (famílias patrocinadoras), sendo que cada família tinha de ser registrada em um templo budista local, que por sua vez cuidaria de todas as suas necessidades espirituais, particularmente funerais e cerimônias memoriais. Este sistema foi criado em algum momento entre 1635 e 1638, a fim de extirpar o cristianismo. Ele também se tornou uma forma de censo para os governantes do regime Tokugawa. O clero budista se tornou, de fato, funcionários do governo e cuidadores dos mortos.

Nas palavras de Kazuo Kasahara, “A sistematização das relações entre templo e o paroquiano significou a formalização da própria fé. Além disso, como cada vez mais os sacerdotes se dedicavam à administração, eles assumiram o papel de registradores civis e agentes funerários em vez de líderes religiosos.” (Kasahara, p. 344) O sistema danka ainda sobrevive, mal, no século XXI, embora os cidadãos japoneses não sejam obrigados a se registrar em um templo local desde o fim do período Edo. O clero budista japonês não é mais recenseador, mas eles ainda são vistos principalmente como condutores de funeral (embora até mesmo seu monopólio sobre este papel esteja se esgotando). O Budismo como uma religião baseada em sacerdotes do templo dedicados à realização de funerais e serviços memoriais é, portanto, em grande parte, um produto do período Edo, mas não inteiramente. Muitos templos ainda possuíam extensões de terra, mas estas terras foram tomadas após o período Meiji e novamente após a Segunda Guerra Mundial, deixando os templos cada vez mais dependentes do funeral e cerimônias memoriais como suas principais fontes de renda. (Ver Tabela 5 em Covell, p. 144)

Em 1868, o xogunato Tokugawa caiu e o imperador Meiji foi restaurado ao poder na Restauração Meiji. Infelizmente, a queda do xogunato Tokugawa trouxe consigo uma reação contra os templos budistas que o regime Tokugawa havia tornado em um braço de sua burocracia. O novo governo estava determinado a abolir os fundamentos ideológicos do regime Tokugawa e substituí-lo por conta própria. Isso significava a supressão do Budismo e do Neo-confucionismo e da promoção de Xintoísmo como religião do Estado em 1870. Muitos templos budistas foram destruídos como parte de um movimento anti-budista violento que atingiu o pico em 1871. Richard Jaffe cita os seguintes surpreendentes números “Tamamuro Fumio estima que dos cerca de 200 mil templos do período Edo, apenas 74.600 restaram após os primeiros anos da era Meiji.” (Jaffe, p. 58) Em 31 de maio de 1872, o governo removeu as leis civis que datam do período Edo, que proibia monges e monjas budistas de se casar ou de comer carne (o clero Jodo Shinshu e Shugêndo tinham se isentado destas leis o tempo todo), a fim tornar o clero budista igual a qualquer outro cidadão aos olhos do Estado. Jaffe faz um resumo dessas mudanças legais:

“Na onda da violência desencadeada pelas medidas anti-budistas severas, promulgadas pelos funcionários do novo regime Meiji 1868-1872, burocratas no Kyobusho (Ministério da doutrina religiosa), o Okurasho (Ministério de Finanças), e a Shihosho (Ministério da Justiça) trabalharam para a completa separação do Budismo com o Estado. Como parte de seus esforços, os funcionários nesses ministérios constantemente eliminavam os regulamentos remanescentes do período Edo, que governavam a vida clerical e eliminou quaisquer privilégios que tinham sido concedidos anteriormente ao clero, em virtude de sua condição de “sem-tetos” (shukke). Apesar da oposição da liderança budista, em pouco tempo, os clérigos foram obrigados a assumir sobrenomes, se registrar no sistema de registro de residência habitual (koseki), e servir nas forças armadas. Essas mudanças reduziram o clero budista para cidadãos como todos os outros japoneses e tornou a propriedade clerical uma ocupação que não era diferente de qualquer outra carreira, aos olhos do Estado.

Sem dúvida, a descriminalização do casamento clerical foi a mais contestada de todas as mudanças nas regulamentações clericais. Com o apoio de budistas como Otori Sesso (1804-1904), um clérigo ex-Soto, que tinha sido nomeado para o Kyobusho, e o clérigo Tendai Ugawa Shocho, em Meiji 24/05/25 os funcionários do Kyobusho emitiram um regulamento que declarou: “a partir de agora clérigos budistas estarão livres para comer carne, casar-se, deixar crescer o cabelo, e assim por diante. Além disso, não haverá penalidade se eles usam roupas comuns quando não estão envolvidos em atividades religiosas” Apesar de todos os aspectos da nova regulamentação, chamada de lei nikujiki saitai porque descriminalizou o consumo de carne e o casamento clerical, sofreu resistência dos líderes das escolas budistas, a característica mais proeminente e vexatória do regulamento para a liderança budista foi o fim das penalidades legais para o casamento clerical.” (Jaffe 1999, pp 78-79)

Richard Jaffe, em seu livro “Nem Monge Nem Leigo: Casamento Clerical no Budismo Japonês Moderno”, oferece-nos uma história dessas e de outras mudanças e as reações das várias escolas do Budismo japonês sobre estas mudanças. Jaffe observa que todas as escolas do Budismo japonês com exceção do Jodo Shinshu e os praticantes Shugêndo se opunham à legalização do casamento clerical, apesar de muitos templos em todas as escolas já terem clérigos secretamente casados. Além disso, as leis não forçam ninguém a deixar crescer o cabelo, vestir roupas civis, comer carne, ou se casar. Os líderes das escolas budistas japonesas sabiam, porém, que sem o poder coercitivo do Estado por trás de seus próprios regulamentos religiosos o clero comum em breve estaria abertamente fazendo o que quisessem (como haviam feito secretamente todo o tempo).

A questão é que o governo secular do Japão havia deixado claro que eles deixariam de ver o clero budista como um grupo especial ou privilegiado e que, se os monges e monjas budistas queriam viver como monges celibatários, eles estavam livres para fazê-lo, mas não seriam forçados a fazê-lo e na verdade eles deveriam considerar-se como parte do mundo secular, com todos os deveres e responsabilidades exigidas de qualquer outro cidadão japonês.

Percorremos um longo caminho desde o tempo e a cultura do Buda quando mendicantes ascéticos itinerantes eram respeitados por deixar o mundo e todos os seus confortos, responsabilidades e embaraços para trás, para que pudessem viver como contemplativos em tempo integral. As pessoas modernas podem tentar optar por sair da sociedade secular, por motivos pessoais ou religiosos, mas Estados modernos geralmente não concedem privilégios especiais ou de status para aqueles que o fazem.

*O termo Hinayana aqui utilizado não possui qualquer conotação pejorativa a qual diz-se que o termo já foi largamento utilizado. Ele é aqui referenciado apenas como um léxico histórico.

O texto continua na terceira parte da série. Aguarde.
Se ainda não leu a primeira parte, pode conferir neste link.

Namu Myoho Renge Kyo
Gassho

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