O texto a seguir é uma longa peça que escrevi** ao me preparar para uma apresentação que fiz como parte de um painel no Won Institute of Graduate Studies 2010 Forum, cujo tópico era “Regras e práticas na Ordenação da Ordem Budista na América.” Isto aconteceu em 28 de Março de 2010. A questão posta antes do painel foi esta:

“Que políticas e procedimentos as Ordens Budistas Asiáticas nos Estados Unidos possuem a respeito de seus clérigos nas áreas de ordenação como, critérios de ordenação, funções atribuídas depois da ordenação, remuneração e status financeiro, além de estado civil? O Budismo Won quer aprender com a experiência de outras ordens budistas e compartilhar estas lições entre diversas escolas budistas nos Estados Unidos, a fim de criar um esforço colaborativo para ajudar o Budismo a se tornar firmemente enraizado na América.”

A propósito, para aqueles que podem achar que este artigo é “acadêmico”, por favor, pensem novamente. Eu não sou acadêmico e isto é mais um ensaio de uma longa caminhada baseada em minhas experiências pessoais, porém com um olho em desenvolvimentos históricos que tenho sido capaz de recolher, retirados de acadêmicos reais. Este é um registro de minha investigação pessoal sobre o que significa ser um “sacerdote budista” ou “ministro” quando o Buda nunca estabeleceu um sacerdócio, mas sim uma associação de mendigos itinerantes. O próprio Nichiren foi um mendigo itinerante. E, no entanto, aqueles de nós ordenados em linhagens japonesas (incluindo Zen, Jodo, Tendai, etc) não somos mendigos itinerantes, não somos monásticos (bem, existem, mas a maioria de nós não é), e ainda assim não somos apenas leigos também. Então, este longo ensaio será dividido em quatro partes.

**texto original do Ryuei Michael McCormick Shonin, soryo da Nichiren Shu nos Estados Unidos, tradução do Shami Guilherme Chiamulera.

1. Ordenação na Nichiren Shu

J=Japonês. Skt=Sânscrito.

Na primavera de 2001, após um estágio de quatro anos no templo budista Nichiren em San Jose, eu completei os 40 dias de formação monástica no templo Kuon-ji no Monte Minobu (Japão) e fui então, junto com outros dois americanos, totalmente ordenado como Ministro da Nichiren Shu (J. kyoshi, literalmente: mestre do Sutra). Não muito tempo depois eu recebi a seguinte pergunta em uma lista de e-mail privada que eu participava naquela época:

“Gostaria também de felicitar o Michael. No entanto, eu não sei o que significa ser ordenado como Ministro na Nichiren Shu. Alguém poderia explicar os requisitos para a ordenação, bem como os deveres e obrigações de um sacerdote da Nichiren Shu? Obrigado!“

nichiren buddhism

Minha resposta abrangeu não só o processo pelo qual me tornei Ministro da Nichiren Shu, mas também meus pensamentos sobre os deveres, funções e obrigações de um Ministro, tanto quanto eu os entendia naquele momento, baseado no que eu tinha aprendido e em minhas experiências pessoais. Uma vez que este artigo tem o propósito de discutir a formação e o papel do clero budista na América do Norte, eu gostaria de compartilhar uma versão atualizada da minha resposta. Talvez as reflexões, de um Ministro budista norte-americano em uma linhagem japonesa do Budismo, mas casado e com um emprego em tempo integral como arquivista, seja útil. Em seguida eu gostaria de rever a forma como a ordem de mendigos itinerantes estabelecida pelo Buda histórico se transformou no clero de sacerdotes casados do Budismo japonês moderno, do qual eu agora faço parte. Além disso, eu quero explorar os possíveis papéis de um clérigo budista casado no mundo moderno (e não apenas no Japão) e se tais papéis podem de alguma forma ser considerados como autenticamente budista.

Em resposta à pergunta feita, a primeira etapa para se tornar parte do clero da Nichiren Shu (J. Soryo) é se submeter à cerimônia chamada shukke tokudo (literalmente “sair de casa e adentrar o caminho”). No meu caso, eu me submeti à cerimônia tokudo em outubro de 1997, meu mestre era (e é) o Ven. Ryusho Matsuda, que na época era o Ministro-Chefe do templo budista Nichiren em San Jose e Bispo eleito da Ordem Nichiren da América do Norte (a associação dos templos Nichiren Shu dos EUA Continental e Canadá). Após o tokudo se é considerado um iniciante (J. shami; Skt shramanera ). Um novato é basicamente um Ministro aprendiz de algum mestre. Na tradição da Nichiren Shu, para dar esse passo inicial, é preciso primeiro encontrar um Ministro totalmente ordenado que esteja disposto a tomar alguém como discípulo e que possa testar a força e a sinceridade de sua prática do Dharma de Buda. Isso pode ser um longo processo, mas que é muito pessoal e que tem a ver com (espero) uma relação crescente de confiança e compreensão mútua entre o potencial aprendiz e o potencial mestre. Ser iniciado significa realizar o seguinte:

  • Buscar a iluminação. Enquanto todos os que recitam o Odaimoku (literalmente: “título sagrado”) do Sutra do Lótus são “aspirantes ao despertar” (J. Bodaishin; Skt bodhicitta), aquele que se torna um Ministro, tem a intenção específica de fazer disso a intenção central de sua vida, além de assumir a responsabilidade de ajudar e incentivar a aspiração ao despertar nas outras pessoas. É basicamente um aprofundamento da aspiração fundamental de todos os budistas Nichiren.
  • Cortar os laços familiares. Em outros países, aqueles que se tornam parte do clero budista vão literalmente cortar todos os laços familiares. O Budismo japonês, no entanto, tem se preocupado mais com a intenção interior do que com assumir o estilo de vida de mendigos indianos. Não é esperado que se devesse, literalmente, cortar os próprios laços familiares. Em vez disso, deve-se perceber que buscar o despertar é uma prioridade maior do que as ambições e expectativas que são comumente uma parte da vida de um chefe-de-família. Isso não significa, no entanto, que se possa renegar responsabilidades familiares em nome do Budismo. O que significa é que o cumprimento das responsabilidades familiares deve ser vista e vivida no contexto do ideal de Bodhisattva de salvar todos os seres sencientes.
  • Treinar a si mesmo através das regras monásticas. Mais uma vez, o Budismo japonês nunca se preocupou com a tentativa de copiar a vida de mendigos indianos do quinto século aC. No entanto, deve-se tentar respeitar o espírito do vinaya (os preceitos monásticos), vivendo com integridade, cortesia e atenção. Como budistas Nichiren, devemos simplesmente nos perguntar se um determinado curso de ação, discurso ou intenção está de acordo com o Namu Myoho Renge Kyo (literalmente “Devoção ao Dharma Maravilhoso do Sutra da Flor do Lótus”).
  • Vestir o manto do Dharma. Esta é uma referência ao capítulo 10 do Sutra do Lótus, intitulado “O Mestre do Dharma”, onde está escrito:

Se você deseja expor este Sutra,
Entre na morada do Tathagata,
Use o manto do Tathagata,
Sente-se no trono do Tathagata,
[E depois de fazer essas coisas,]
Exponha-o para as pessoas sem medo!
Entrar na morada do Tathagata significa ter grande compaixão.
Vestir o manto significa ser gentil e paciente.
Sentar-se em seu trono, significa ver o vazio de todas as coisas.
Exponha o Dharma só depois de fazer estas [três] coisas!
(Murano 1974, pp 178-179)

  • Tomar os Três Refúgios. No Budismo da Nichiren Shu tomamos refúgio no Buda Original Shakyamuni revelado no capítulo “A Duração da Vida do Tathagata” do Sutra do Lótus, no Odaimoku do Sutra do Lótus, que é o Namu Myoho Renge Kyo, como o Dharma Supremo, e na Sangha dos Bodhisattvas da Terra conduzido pelo Bodhisattva Prática Superior que apareceu no capítulo “Aparecimento dos Bodhisattvas da Terra” do Sutra do Lótus, a quem foi dada a incumbência de defender o Dharma Maravilhoso nesta Era, após o Parinirvana do Buda, no capítulo “Poderes Sobrenaturais do Tathagata” do Sutra do Lótus.
  • Dominar a disciplina tríplice da virtude, concentração e sabedoria. No Budismo de Nichiren, isso significa vivermos uma vida moralmente saudável por manter o espírito de Namu Myoho Renge Kyo em todos os nossos pensamentos, palavras e ações em todas as situações; meditar sobre o Gohonzon (lit. foco de devoção, neste caso, refere-se ao Dharma Maravilhoso do Sutra da Flor de Lótus e/ou do Buda Original Shakyamuni que o confere a nós) em todos os momentos para que possamos recorrer à tranquilidade e discernimento de nossa própria natureza de Buda; e, finalmente, perceber por nós mesmos a sabedoria do Buda expressa por Namu Myoho Renge Kyo.
  • Afastar-se da vida secular. Novamente, isso não significa que viramos as costas para o mundo secular, mas que devemos estar “nele, mas não dele.” Em outras palavras, nós nos esforçamos para ver as distrações e a vaidade inerente nas ambições seculares e, ao invés disso, nos esforçar em ver e viver de todo o coração o Dharma de Buda em todas as situações que vivemos.
  • Ter fé no Buda. Isto é o mesmo que ter fé em Namu Myoho Renge Kyo que é a Verdade da vida e dos ensinamentos do Buda. Ter fé neste sentido é perceber que podemos confiar no Namu Myoho Renge Kyo, ao invés de buscar a verdadeira felicidade em qualquer lugar que não seja na Stupa de Tesouros, que reside nas profundezas de nossas próprias vidas.
  • Observar os preceitos. Novamente, isto não é literal, mas a intenção do vinaya, que se cristaliza no Preceito do Cálice de Diamante, de sinceramente defender o Namu Myoho Renge Kyo em todas as circunstâncias.
  • Proteger o Dharma defendendo o verdadeiro ensinamento e corrigir eventuais deturpações (difamação) do Dharma de Buda. Proteger o Dharma também significa se esforçar para fortalecer e manter a Sangha e compartilhar os ensinamentos com as outras pessoas.

nichiren buddhism

Na cerimônia de tokudo, se faz o compromisso de se esforçar em todas essas coisas. Além disso, se faz o compromisso de cooperar com seu professor na transmissão do Sutra do Lótus para a posteridade, geração após geração.

Após o tokudo, o novo novato é enviado para a cerimônia de registro (docho) em Kiyosumidera (Seicho-ji, onde Nichiren foi ordenado e estudou o Budismo quando criança), na primeira oportunidade. Docho se refere ao certificado de ordenação que se recebe nesse momento. Até que um novato tenha ido para a cerimônia de registro ele ou ela não é reconhecido oficialmente pela Nichiren Shu.

Durante os próximos anos, espera-se do novato estudo, prática e desenvolvimento de sua fé, sob a orientação do professor. Isso inclui aprender a recitar o Sutra e aprender a realizar as diversas cerimônias. No meu caso e dos outros dois novatos com quem eu treinei, nós nos reuníamos uma vez por ano para um seminário anual para Shami, que se realiza ao longo de um fim de semana, três ou quatro dias em um dos templos da Nichiren Shu na América do Norte. Durante esses seminários aprendemos mais sobre as cerimônias, fomos treinados na recitação do Sutra e no canto dos hinos litúrgicos (J. shomyo) e também participamos de aulas sobre o Sutra do Lótus, a vida de Nichiren Shonin, a doutrina budista e a história do Budismo Nichiren.

Quando o mestre sente que o discípulo está pronto, o novato é enviado para o programa de treinamento de 35 dias – Shingyo Dojo – no Monte Minobu, onde irá completar seu treinamento e receber a ordenação completa como Ministro. Shingyo significa literalmente “fé e prática”. Antes de ser admitido no Shingyo Dojo deve ser testada a capacidade de recitar o Sutra e também o conhecimento da doutrina budista básica. No caso dos outros dois novatos americanos e eu, nossa capacidade de recitar o Sutra foi testada pelo Bispo da Ordem Nichiren da América do Norte no templo budista Nichiren de San Jose, no verão de 2000, mas o nosso teste doutrinário foi feito no Colégio Minobu no Monte Minobu, no outono de 2000. Considerou-se que deveríamos fazer o teste com os outros novatos japoneses que desejavam entrar no Shingyo Dojo, apesar de nosso teste ter sido traduzido para o Inglês especialmente para nós. Passamos por ambos os testes, mas sentimos que seria necessário ter algum tempo adicional para nos aclimatar à formação monástica e aprender a maneira coloquial de recitar o Sutra do Lótus em japonês, de modo que fomos enviados para nos juntar a classe de correção de recitação com duração de cinco dias, que é realizada cinco dias imediatamente antes do início do Shingyo Dojo.

Os quarenta dias no Shingyo Dojo foram verdadeiramente esgotantes, mas também gratificantes. 67 noviços japoneses estavam lá, assim como os outros dois novatos americanos e eu. Uma vez que os novatos americanos não podiam falar em japonês fluentemente, foram fornecidos tradutores que iriam se sentar logo atrás de nós para nos traduzir a essência das palestras e/ou nos ajudar a seguir as instruções que nos fossem dadas. Felizmente, a nossa formação com os nossos mestres em nossos templos na América e nos seminários anuais para Shami foram muito detalhistas. De certa forma, estávamos mais bem preparados do que muitos dos novatos japoneses, nós três já sabíamos como conduzir cerimônias, dobrar nossas vestes e cantar os hinos litúrgicos.

Grande parte do tempo, pudemos apenas seguir o que todo mundo estava fazendo, e para as cerimônias tínhamos todos os Sutras e liturgia transliterados para seguirmos adiante. Eu gostaria de observar que isso tornou mais fácil para nós do que para os noviços japoneses. Os noviços japoneses tinham de olhar para o Sutra do Lótus em chinês e pela memória recitar o Sutra em japonês coloquial o que, às vezes, envolvia a reorganização dos caracteres e o preenchimento de partículas em japonês por causa da gramática japonesa que é muito diferente da tradução chinesa do Sutra do Lótus de Kumarajiva. Tudo o que tínhamos que fazer era mudar a nossa leitura Sino-Japonesa transliterada para a nossa leitura em japonês transliterado.

A maior dificuldade para nós estava em permanecer sentados na postura conhecida como seiza, a maneira formal japonesa de se sentar em cima das pernas. Nós não usamos bancos ou almofadas, e às vezes não havia tapetes e tivemos que sentar diretamente sobre o piso de madeira da sala de treinamento. Tivemos que sentar desta forma durante todos os serviços e palestras. Eu observei, entretanto, que houve alguns novatos japoneses que estavam tendo tanto ou mais dificuldade com isso do que nós, americanos. Eu gostaria de notar que sentar desta forma não era simplesmente desconfortável (embora, por vezes, isso fosse o objetivo, como quando tivemos permanecer assim como castigo por nossos erros). Um Ministro japonês deve ser capaz de sentar-se nesta postura formal, sem se mover ou se contorcer ao fazer funerais e cerimônias memoriais para os membros de seu templo e, em alguns templos, pode haver uma meia dúzia, ou mais, dessas cerimônias realizadas por dia todo dia. Por isso, é importante ser capaz de suportar permanecer sentado em seiza por longos períodos de tempo se a pessoa for um Ministro japonês. Aqueles que persistiram em se contorcer ou sentaram de forma incorreta (como eu, por vezes, devo admitir) era advertido ou até mesmo expulso, até conseguir se sentar corretamente sem se mover.

nichiren buddhism

A vida no Shingyo Dojo foi realmente uma vida monástica. Eu não era autorizado a tocar em dinheiro ou ter pertences pessoais, usávamos vestes clericais ou roupas de trabalho em todos os momentos, mantivemos nossas cabeças raspadas, nossas refeições eram todas vegetarianas, nós bebemos apenas água ou chá, e, claro, o fumo foi proibido (aqueles que fumaram foram apanhados e repreendidos em voz alta e obrigados a se ajoelhar em seiza no cascalho fora da sala de treinamento por até uma hora) e nós tínhamos uma rotina apertada, que começava às 4h (ou até mais cedo, às vezes) e terminava com apagar as luzes às 21h00.

Às 4h acordávamos rapidamente, arrumávamos nossos futons e nos reuníamos no salão principal para recitar o Odaimoku até que todo mundo se reunisse. Em seguida, em turnos íamos realizar o suigyo. (literalmente: prática da água). Suigyo é a prática de despejar baldes de água gelada sobre si mesmo enquanto se entoa orações e um trecho dos versículos do capítulo 25 do Sutra do Lótus. Eu acredito que isso se destina a ser uma forma de austeridade, mas também servia para melhorar a circulação do nosso sangue e para nos manter em alerta e quentes durante as primeiras horas da manhã. Por volta das 5h estávamos vestidos com nossas roupas e kesa e nos reuníamos no jardim da frente. De lá, marchávamos em uma procissão (enquanto recitávamos Odaimoku ao ritmo de tambores de mão chamados uchiwa-taiko) até o templo Kuon-ji para participar da cerimônia da manhã.

Esta cerimônia matinal também incluía recitar longas seções do Sutra do Lótus, de modo que no momento em que terminou o Shingyo Dojo tínhamos recitado o Sutra do Lótus inteiro. Após a cerimônia da manhã no Kuon-ji marchávamos de volta montanha a baixo, até o Mausoléu de Nichiren. Ali realizávamos uma breve cerimônia. Finalmente, voltávamos para a sala de treinamento por cerca de 7h e realizávamos mais uma cerimônia. Depois recebíamos instruções e exortações do instrutor chefe e seus assistentes. Na verdade, quando o instrutor chefe ia embora, os assistentes geralmente nos repreendiam por todas as nossas falhas ou falta de sinceridade e tentavam incutir em nós um sentimento de profunda vergonha e determinação de fazer melhor da próxima vez. Na ocasião, isto realmente poderia envolver repreensão física, como quando um novato mais velho foi arrastado até à frente da sala pelo colarinho.

Depois iríamos tomar café da manhã às 8h da manhã e em seguida fazíamos a limpeza do refeitório, da sala de treinamento, dos dormitórios, quartos dos professores e dos jardins.Das 9h00 da manhã até meio-dia tínhamos palestras sobre vários temas relacionados à realização de cerimônias, como cantar os hinos, instruções sobre práticas como a copiar o Sutra e sobre a logística de gestão de um templo. Conforme o Shingyo Dojo foi progredindo, tivemos até mesmo palestras abordando várias questões sociais (embora, naturalmente, fossem questões sociais do Japão, nem sempre relevantes para nós).

Ao meio-dia almoçamos, e a partir das 13h até 15h30 tínhamos mais palestras na sala de treinamento. Às 15h30 nos encontrávamos no jardim da frente e, em seguida, marchávamos até o Mausoléu de Nichiren e realizávamos uma breve cerimônia lá e, então, marchávamos de volta para a sala de treinamento para a cerimônia da noite. A cerimônia da noite se tornava cada vez mais elaborada conforme o Shingyo Dojo progredia, conforme incorporávamos mais e mais do que aprendíamos – e isso envolvia recitação, hinos litúrgicos, a inscrição de toban (placa memorial) e o uso de vários instrumentos, como os pratos, sinos e gongos, nos últimos dias do Shingyo Dojo, nós realizávamos uma cerimônia muito longa e elaborada dedicada aos fantasmas famintos (J. segaki).

Às 17h era servida a janta. Às 18h tínhamos aulas, mas na maioria das vezes este período era dedicado à recitação do Sutra e do Odaimoku, incluindo a prática de meditação Shodaigyo. Shodaigyo consiste em um período de meditação silenciosa sentada, para obter calma e concentração, seguida pela recitação de Odaimoku ao ritmo de um tambor taiko (começando lento, ficando gradualmente mais rápido, diminuindo novamente), encerrando com outro período de contemplação silenciosa. Às 20h00 tínhamos tempo para visitar as banheiras de hidromassagem e, em seguida, copiávamos o Capítulo 16 do Sutra do Lótus (até o final do Shingyo Dojo terminamos de copiar todo o Capítulo 16 e estes foram apresentados ao Gohonzon durante o serviço de Segaki acima mencionado).

As 21h eram apagadas as luzes. Esta rotina mudou um pouco nas últimas duas semanas, quando começamos a percorrer vários templos na área. Nesses templos parávamos na frente do Hondo (Salão Principal) e recitávamos o Sutra do Lótus (geralmente, Capítulos 16 ou 21) e, então, recebíamos ofertas que colocávamos em malas que carregávamos conosco. As ofertas consistiam de refrigerante, suco e vários doces. Voltávamos para a nossa sala de treinamento e éramos autorizados a comer as ofertas somente após o jantar.

nichiren buddhism

Ao completar a nossa formação no Shingyo Dojo, todos nós nos tornamos kyoshi, isto é Ministros totalmente ordenados. Os Ministros japoneses recém-ordenados tinham agora autoridade para serem os Ministros Chefe de seus templos. A maioria deles eram filhos de Ministros e com o tempo iriam herdar a responsabilidade pelo templo de sua família, realizando funerais e cerimônias memoriais para a danka (famílias de doadores) do templo. No caso de nós três, que erámos Ministros americanos sem templos para herdar, fomos convidados para os aposentos privados do Abade do templo Kuon-ji, Nichiko Fuji. Para cada um de nós ele inscreveu o Odaimoku em um banner e disse para cada um de nós, que era a sua esperança, que propagaríamos o Sutra do Lótus e o Namu Myoho Renge Kyo na América do Norte.

De minha parte, eu descobri que isso é muito difícil. Por causa de sua associação com o nacionalismo japonês, a suposta intolerância de seu fundador Nichiren e a maneira agressiva, intolerante e materialista de apresentar o Budismo Nichiren perpetrado por certa nova religião japonesa, a reputação do Budismo Nichiren fora do Japão foi muito manchada. Além disso, muitos norte-americanos procuram o Budismo como uma forma de terapia de autoajuda ou de uma disciplina meditativa para assumir em seu tempo livre, e o Budismo de Nichiren parece muito devocional, muito parecido com uma versão japonesa de “igreja”. Ele não corresponde às expectativas das pessoas sobre o que o Budismo deveria ser, e nunca foi tão popular como o Zen, tibetano, ou a meditação Vipassana. A maior dificuldade que eu encontrei, no entanto, é na minha própria posição como um Ministro ordenado budista que é, ao mesmo tempo um chefe-de-família com um trabalho secular em tempo integral e que tem uma filha no ensino médio.

O que eu descobri é que é difícil encontrar um papel significativo como Ministro budista em uma sociedade não budista; e ainda mais difícil até mesmo encontrar o tempo para trabalhar nessa qualidade. A única vez que eu sou capaz de trabalhar como um Ministro é quando eu participo nas manhãs de domingo das cerimônias no templo budista de San Jose; quando eu realizo uma reunião de duas horas nas tardes de domingo (consistindo de meditação sentada, discussão do Dharma e uma cerimônia da Nichiren Shu), em San Francisco em um pequeno Dojo que foi disponibilizado para mim; e nas quintas-feiras de noite quando eu vou para o Nichiren Buddhist International Center para ajudar o Gerente a traduzir a liturgia da Nichiren Shu para o Inglês. Isso me levou a pensar sobre o meu papel e a me perguntar sobre o possível papel e significado que pode haver para um Ministro budista secularizado. Por isso, eu venha há muito tempo contemplando os Sutra e partes vinaya do Tripitaka, e pesquisando como a Sangha de mendigos itinerantes que, literalmente, cortaram os laços com o mundo se transformou em uma ordem de clérigos secularizados.

*O termo Hinayana aqui utilizado não possui qualquer conotação pejorativa a qual diz-se que o termo já foi largamento utilizado. Ele é aqui referenciado apenas como um léxico histórico.

O texto continua na segunda parte da série. Aguarde.
Namu Myoho Renge Kyo
Gassho

free vector