Por Reverendo Ryuei McCormick

Até agora, nesta série de textos, descrevemos os dez mundos, sua posse mútua e os dez aspectos da verdadeira natureza de toda a existência. Quando estes fatores estão juntos, obtemos 1.000 dos 3.000 mundos em um único momento de pensamento. Quando os três reinos dos cinco agregados, seres vivos e seu ambiente se multiplicam, então, todos os 3.000 mundos são contabilizados. Antes de descrevermos os três reinos, eu gostaria de falar mais sobre os dez aspectos e a razão pela qual os budistas Nichiren recitam por três vezes, como parte de nossa prática diária, a passagem do Capítulo 2º do Sutra do Lótus, o Hoben-pon.

A razão para esta prática pode ser encontrada no núcleo do ensino da escola T’ien-t’ai conhecido como a “unificação das três verdades”. Esta era a maneira de T’ien-t’ai de descrever a relação entre o vazio, a existência provisória e o Caminho do Meio, e como essa relação é realizada em nossa prática real do budismo. Da perspectiva da escola T’ien-t’ai, os ensinamentos do Buda são organizados de modo que o praticante budista tenha uma compreensão progressivamente mais profunda da natureza da realidade, partindo do pré-Mahayana ao Mahayana provisório e aos verdadeiros ensinamentos Mahayana do Sutra do Lótus.

De acordo com este sistema, o Buda começou a ensinar seus discípulos com os ensinamentos Tripitaka ou Três Cestos. Estes são chamados assim, porque são compostos de os “três cestos”:  Sutras pré-Mahayana  (discursos), Vinaya (preceitos monásticos) e Abhidharma ( ensinamentos sistemáticos). Nestes ensinamentos o vazio é abordado através da análise dos agregados e dos vínculos de originação dependente. Em outras palavras, este ensino visa revelar o vazio do eu, examinando os componentes da existência, como os cinco agregados da forma, sensação, percepção, volição e consciência. Isto mostra que cada um dos agregados é impermanente, sujeito ao sofrimento, e não pode ser a base de uma independência permanente, sozinha ou em grupo. Os vínculos de origem dependente revelam a sucessão de causas e efeitos, que compõem a existência e revelam que um eu permanente, não pode ser encontrado nos agregados. Assim sendo, podemos perceber a natureza contingente do eu e extinguir a ganância que poderia satisfazer tal “eu”, a raiva em relação ao que ameaça esse “eu” e a ignorância em relação à natureza vazia dos agregados. Desta forma, podemos atingir o estado de nirvana e a libertação do nascimento e da morte. Pode-se perguntar: O que são os agregados se eles não são um eu? Os agregados existem de alguma forma por conta própria ocasionalmente? Quem é que está livre de nascimento e morte e quem entra no nirvana se não há um eu?

Em seguida, o Buda ensinou os Sutras Prajnaparamita para os discípulos mais avançados e para aqueles que estão começando no caminho do bodhisattva. Como esses ensinamentos são dirigidos a ambos os grupos, eles são chamados de os ensinamentos que os grupos têm em comum. Esse nível de discurso se aproxima do vazio de forma mais imediata ou intuitiva, porque não envolve análise. Em vez disso, aprende-se em primeiro lugar, a não colocar substância ou uma natureza fixa nas coisas em geral. Também é mais minucioso em sua aplicação do vazio, na medida em que não se aplica apenas ao eu, mas, a todos os fenômenos condicionados. Então, em resposta à pergunta acima, os agregados nunca fornecem um eu em conjunto ou em parte para um indivíduo. Os próprios agregados não têm substância permanente ou natureza fixa. Cada agregado depende de causas e condições, que também são dependentes de outras causas e condições e assim por diante, infinitamente. O vazio neste ensinamento é o vazio de qualquer natureza fixa ou de uma substância qualquer. Em resposta à questão de quem é salvo, este ensinamento afirma que os bodhisattvas juram salvar todos os seres sencientes, mas, não se prendem à ideia de que existem seres a serem salvos. É tudo um espetáculo vazio, todavia, um espetáculo que manifesta sofrimento ou libertação, dependendo do fluxo de causas e condições. A pergunta que pode então ser feita: “Como os bodhisattvas lidam com causas e condições, se eles sabem que são todos vazios em última análise, e não existe base, origem ou objetivo e nenhum eu ou uma entidade real residindo em lugar algum?”

Em resposta a esta pergunta, o Buda ensinou o Sutra da Guirlanda de Flores, direcionado especificamente, para aqueles que são bodhisattvas firmemente estabelecidos. Neste ponto, é preciso entender que o vazio não é um beco sem saída, mas, apenas um começo. Isso requer uma valorização dos fenômenos contingentes e, portanto, a verdade da existência. Reconhecendo que todas as coisas são vazias, os bodhisattvas também enxergam que esse vazio não é um vazio em branco ou um nada. Pelo contrário, a ausência de uma natureza fixa ou independente é o que permite que todas as coisas fluam e se movam, mudem e cresçam e, em última análise, se relacionem tão profundamente, que todas as coisas afetam todas as outras coisas, como uma teia que estremece de uma só vez, quando qualquer fio é tocado. Todas as coisas, todos os seres, são manifestações provisórias desse processo dinâmico interdependente. Ao perceber isso, os bodhisattvas negam a negação da vacuidade, e estão livres para reengajar-se no mundo e apreciar todas as coisas sem apego ou aversão. Aos poucos os bodhisattvas percebem o Caminho do Meio, que integra o desapego pacífico com envolvimento compassivo. T’ien-t’ai chama o vazio, os aspectos provisórios e o caminho do meio de realidade das três verdades. Neste ensinamento eles são abordados dialeticamente a saber: o vazio é a tese, a existência provisória é a antítese, e a síntese é o caminho do meio. Este não é um ensinamento final. É uma integração ainda maior do que está por vir. Finalmente, pode-se perguntar: “Se o Tripitaka e os ensinamentos comuns negam o eu e todos os fenômenos, e o ensinamento específico nega aquela negação da vacuidade, existe algum ensinamento explicitamente afirmativo no budismo?”

O ensino explicitamente afirmativo pode ser encontrado no Sutra do Lótus e Sutra do Nirvana. Esses dois sutras apresentam o ensinamento perfeito ou completo (o caractere chinês, aqui usado, tem ambos os significados) da integração de todas as três verdades: o vazio, o provisório, e o caminho do meio em um todo sem costura. Cada um destes, se devidamente compreendidos, levam imediatamente a uma compreensão dos outros dois. Por exemplo, o que é vazio de uma existência independente e fixa, existe simultânea e provisoriamente devido a causas e condições, e, portanto, exemplifica o caminho do meio. Enquanto os ensinamentos anteriores negam o mundo do nascimento e da morte através de uma abordagem analítica ou intuitiva do vazio, ou negação de um vazio unilateral que afirma a existência provisória de todas as coisas; o ensinamento perfeito afirma a unidade total das três verdades: do Vazio, do Provisório e do Caminho do Meio. Neste ensinamento, os aspectos afirmativos das negações anteriores são revelados. Aspectos negativos e limitantes são vazios, condicionados e são fenômenos sem limites provisoriamente definidos, e todos manifestam a libertação do Caminho do Meio. Por exemplo, anteriormente os veículos dos shravakas (discípulos monásticos) e pratyekabuddhas (os despertos em particular) foram reprovados em favor do veículo do bodhisattva, mas agora todos os veículos provisórios são vistos como desdobramentos do Veículo Único, que conduzem a todos no Budismo. Nos ensinamentos anteriores, o histórico Buda Shakyamuni foi apresentado como uma manifestação provisória finita do princípio cósmico do estado de Buda, que às vezes é personificado como um buda cósmico chamado Vairocana, que dizem transcendeu o nascimento ou a morte. No entanto, O Sutra do Lótus retrata o Buda Shakyamuni, como aquele que revela o nascituro e a natureza imortal do estado budico, pela sua presença espiritual atemporal e atividade hábil. Os ensinamentos anteriores compararam e contrastaram o vazio, o provisório e o caminho do meio, mas aqui a unidade intrínseca da liberdade do vazio, a capacidade de resposta criativa do provisório e a sublimidade do Caminho do Meio é totalmente revelada.

Em reconhecimento a esta unidade, os dez aspectos são recitados por três vezes, primeira para o vazio, segunda para a existência provisória e  terceira para o caminho do meio. Por exemplo, o primeiro termo Nyo Ze So consiste em três caracteres. O primeiro caractere Nyo significa “tal” e representa o “vazio” de todos os fenômenos, porque “talidade” é sinônimo de vazio no budismo. O terceiro caractere em cada um dos dez aspectos mostra o que os diferencia. Neste caso assim é “aparência”. Então, “aparência” e os outros termos representam existência provisória. O caractere do meio, Ze ou “como” mantém os dois outros juntos e representa o Caminho do Meio. Recitar os dez aspectos por três vezes tornou-se uma forma de reconhecer que os três caracteres de cada aspecto expressam a unidade das três verdades. Consequentemente, isso significa que a unidade das três verdades é muito mais do que uma simples parte, daquilo que trata os três mil mundos em um único momento. Com sorte, nós podemos trazer essa consciência para a nossa prática e despertarmos para o significado da unidade das três verdades nas nossas próprias vidas.

(*) Texto original publicado no Nichiren Shu News em dezembro de 2004. Tradução da Sangha Hokekyoji Nichiren Shu Brasil em março de 2022.

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