Por Myokei Caine-Barrett

Baseado nas cartas que Nichiren Shonin escreveu para suas seguidoras. Myokei Caine-Barret explica o porquê do líder do Sutra do Lótus do século XIII ser um feminista na prática.

Foto: Nichiren Shonin exilado na Ilha de Sado, onde ele escreveu muitos de seus ensinamentos. Coleção de Henry L. Phillips, Legado de Henry L. Phillips, 1939.

No Kaikyoge (“Versos para a Abertura do Sutra”) que recitamos diariamente, estão as palavras “honrado seja o Sutra da Flor de Lótus do Dharma Maravilhoso, o ensinamento da igualdade, a grande sabedoria, o veículo único.” Esta frase fala sobre o grande significado do Sutra do Lótus, no mundo de hoje, cujo significado não pode ser ignorado.

O que significa chamar o Sutra do Lótus de ‘o ensinamento da igualdade’? Que aplicação prática isso tem em nossas vidas e nas vidas dos demais?

Quando eu penso no Sutra do Lótus como os ensinamentos da igualdade, uma passagem única e bem colocada no Capítulo 5, “A Parábola das Ervas”, vem à mente:

Eu vejo todos os seres humanos igualmente.

Eu não tenho parcialidade com eles.

Não há ‘este aqui’ ou ‘aquele ali’ para mim.

Eu transcendo amor e ódio.

 

Eu sou apegado ao nada.

Eu não sou impedido por nada.

Eu sempre exponho o dharma.

Para todos os seres humanos igualmente.

Eu exponho o dharma para muitos

Da mesma maneira que para um.

 

Eu sempre exponho o dharma.

Eu não faço mais nada.

Eu não me canso de explicar o dharma

Enquanto eu vou, eu volto, ou me sento ou levanto.

Eu explico o dharma para todos os seres viventes

Assim como a chuva cai para todos da Terra.

Sutra do Lótus, versão de Murano.

Toda vez que eu pego o sutra e recito essas palavras, eu me lembro que minhas mãos e boca se tornaram as mãos e boca de Buda. Sou consciente disso porque sou uma praticante, quando eu ando no mundo, meu coração deve responder da mesma maneira que de Buda – aquele que aspira pela iluminação – e minha conduta deve ser de acordo com os quatro nobres votos que recitamos diariamente.

Desde o início da minha prática, o ensinamento da igualdade se tornou o refúgio que buscava da discriminação por ser uma pessoa de etnia mista. O Sutra do Lótus afirmou meu lugar no mundo como nenhum outro ensinamento fez, e desde o início, eu aprendi que era de minha responsabilidade compartilhar este dharma com os outros, para que assim eles pudessem encontrar de onde pertenciam. Quanto mais eu praticava, maior meu entendimento sobre a desigualdade no mundo, nascida pelo desejo aparente da humanidade de ativamente buscar a separação de qualquer outro ser humano considerado o ‘outro’.

 

Nas últimas décadas, vários movimentos criaram uma mudança positiva ao redor do mundo, aumentando a visibilidade e o reconhecimento de grupos antes desprovidos de direitos. Para as mulheres, as vitórias têm sido agridoces já que um aumento das ações reacionárias atenta a desfalcar os ganhos duramente conquistados. Há, no entanto, um crescente reconhecimento de que as nações não podem prosperar se metade da população é excluída da educação, do trabalho ou das tomadas de decisões.

Apesar da inclusão na sangha desde os tempos de Buda, achava-se que as mulheres eram incapazes de atingir a iluminação.

As mulheres hoje podem pensar em seu status com reservas, mesmo assim, elas não sofrem as mesmas limitações que as mulheres da época de Nichiren Shonin. Apesar da inclusão na sangha desde os tempos de Buda, achava-se que as mulheres eram incapazes de atingir a iluminação. Os cinco obstáculos, as três obrigações e as oito regras do Budismo estavam entre os padrões da sociedade e costumes configurados para manter as mulheres em espaços limitados. Os cinco obstáculos falam da incapacidade da mulher de se tornar um brahma, um shakra, um rei demônio, um rei que gira a roda, ou um buda. As três obrigações das mulheres derivam da “moral de Confúcio de que elas deveriam obedecer aos pais em casa, aos maridos quando casadas e aos filhos quando viúvas.”. As oito regras eram especificamente endereçadas às monjas e diziam respeito às suas condutas em torno dos monges. Algumas dessas limitações ainda permanecem em alguns lugares hoje em dia, nas várias sociedades ao redor do mundo, e continuam a governar como as mulheres podem praticar como Budistas.

Nichiren Shonin era um monge japonês do século XIII que, baseado em um vasto estudo, buscou retornar o Budismo de seu tempo à pura intenção do Sutra do Lótus. Ele estava certo que os ensinamentos incorretos criaram as condições para os conflitos nacionais e as infinidades de desastres naturais, refletindo o a era do declínio do dharma (mappo). Consequentemente, as atitudes de Nichiren Shonin com relação às mulheres eram baseadas no Sutra do Lótus e refletiam seu entendimento aos ensinamentos do Buda sobre a igualdade, não os padrões dos tempos medievais. A grande devoção e compaixão que ele tinha por suas seguidoras são claramente vistas em muitas das cartas escritas a elas, vinte e duas das quais fazem parte de uma coletânea de um volume chamado Nyonin Gosho.

Em sua resposta à esposa do Senhor Shijo Kingo, Nichiren escreveu, “Lendo todas as escrituras Budistas além do Sutra do Lótus, eu não quero ser uma mulher. Alguns sutras dizem que as mulheres são mensageiras do inferno, outros sutras dizem que as mulheres são como serpentes ou uma árvore curvada, enquanto que outros sutras dizem que suas sementes da iluminação estão torradas.”

Em ‘Verdadeira Entidade da Vida’, ele escreve, “Nos tempos de mappo, não deveria existir discriminação entre os que propagam os cinco caracteres do Myoho-Renge-Kyo, sejam eles homens ou mulheres. Se eles não são bodhissatvas da Terra, eles não poderiam recitar o odaimoku (recitação do título do Sutra do Lótus).” O grande equalizador, para Nichiren, é simplesmente a fé no próprio Sutra do Lótus.

Nichiren entendeu que as limitações dos tempos e as cargas extras dadas às mulheres eram o que afetavam suas habilidades para praticar o Budismo. Ele foi um feminista na prática e encorajava as mulheres a não abandonarem ou quebrarem as tradições, mas a encontrarem meios para trabalhar dentro das normas sociais. Ao fazer isso, ele deu às seguidoras o forte apoio para que elas enfrentassem os desafios de suas vidas e buscassem o caminho da iluminação. Eu penso na maneira de Nichiren como sendo empoderamento, um modo de dizer às seguidoras ‘Vocês são capazes. Nunca desistam.’

A coragem que Nichiren Shonin pregava e inspirava nessas mulheres, revelaram suas resiliências e vontade de desafiar a si mesmas. Mesmo que não saibamos os seus nomes ou suas histórias pessoais, as cartas de Nichiren às suas seguidoras são instrutivas. Facilmente podemos nos ver nas mesmas situações que essas mulheres e encontrar apoio nas palavras de Nichiren.

Uma carta sobre a Menstruação

Em uma carta de Nichiren Shonin, uma seguidora pergunta sobre a prática durante a menstruação. Nichiren responde, “Essa é a angústia de toda mulher, a qual muitas pessoas tentaram responder no passado… eu não posso pensar em nenhum sutra ou discurso que mostre o desgosto pela menstruação… eu acredito que a menstruação não é uma impureza que vem de fora, mas um fenômeno fisiológico peculiar da mulher, e indispensável para a continuação da raça humana.”

Nesta resposta, Nichiren descreve a doutrina de Zuihobini, ou “adaptando os preceitos à região”, que especifica que “nós não devemos ser contra às maneiras e costumes de um país a menos que seja uma séria violação aos preceitos Budistas.” Ele então declara que seria uma violação se a mulher deixasse de praticar durante a menstruação. Aqueles que aconselham o contrário durante o ciclo da mulher, diz Nichiren, pretende “quebrar sua fé verdadeira” e força a mulher a cometer “o pecado do abandono do verdadeiro dharma ao dizer que praticar o Sutra do Lótus durante a menstruação significa demonstrar desrespeito ao mesmo.”

Nichiren poderia ter instruído a mulher a conter sua prática e seguir os costumes locais, mas ao invés disso, ele responde com profundo respeito à sua seguidora e com gratidão por sua fé. Ele honra os desafios da prática do Sutra do Lótus, junto com as dificuldades específicas da prática da mulher, e a lembra dos inúmeros méritos que resultam de sua prática. Estas são algumas poucas palavras de conforto para encorajá-la a continuar a prática. Elas nos servem até hoje.

Anseio para Ver o Buda

Nichimyo Shonin foi uma seguidora desde muito cedo separada de seu marido e praticamente uma mãe solteira para sua filha pequena. Ela viajou com a sua filha de Kamakura para a Ilha de Sado e Monte Minobu; uma viagem muito difícil naqueles tempos de conflitos e confusões. Certamente a segurança delas estava em risco. Mesmo assim, apesar dos riscos, Nichimyo Shonin viajou em muitas ocasiões para encontrar com Nichiren.

A carta de Nichiren para Nichimyo Shonin introduz a ideia do ‘anseio para ver o Buda’. Ele conta muitas histórias para ilustrar a maneira que deveríamos nos aproximar da fé e da prática. Em cada exemplo, ele compartilha a vontade dos seguidores de Buda em ouvir e aprender o dharma de todas as formas necessárias.

As medidas extraordinárias que cada um tinha que tomar para ouvir o dharma deve ser inimaginável para nós, de uma era de fácil acesso ao conhecimento e de comunicação instantânea. Imagine alguém lhe falar que você deveria “retirar sua pele para fazer de folha de papel, apontar seu próprio osso para usar como caneta, esmagar sua própria cartilagem para usar como tinta e espremer seu próprio sangue para usar como diluidor para poder escrever.” Ou pense em dizer a um demônio “eu lhe darei meu corpo, por isso, por favor, me diga o resto do verso.” Essas histórias, recontadas por Nichiren, são instrutivas para aqueles que não tem que se esforçar para ouvir o dharma. Como o acesso ao Sutra do Lótus acaba sendo fácil, não precisamos nos sacrificar da mesma maneira para recebermos os ensinamentos.

O esforço em buscar o dharma se resume em desenvolver o caráter, forte condua moral e a habilidade em perseverar.

O sacrifício é geralmente visto como uma rendição ou desistência de algo pelo bem de outra coisa, a ideia de que aquilo que desistimos resulta de alguma forma em sofrimento pessoal. Quando tal sacrifício é exigido, buscar o dharma pode ser uma tarefa indesejável. A pessoa pode não desejar se sujeitar a qualquer sofrimento, pensando em seu alto custo. No entanto, pode ser mais fácil aceitar a necessidade do sacrifício quando se entende o valor ou a preciosidade do que se está buscando. Neste caso, o significado do sacrifício não carrega em si a mesma noção de perda ou desvantagem.

O esforço em buscar o dharma se resume em desenvolver o caráter, forte conduta moral e a habilidade em perseverar. E coloca a pessoa em uma jornada de abertura, despertar para um entendimento do significado do dharma na vida dela. Desta forma, desenvolve nela um espirito de busca constante sem relutar pela sua vida em prol do esforço requerido.

Este é o espírito e a determinação que Nichiren Shonin descreve quando fala da viagem de Nichimyo Shonin de Kamakura até Sado e os obstáculos que ela encontrou ao longo do caminho. Ele é tocado profundamente pelos seus esforços em buscar o dharma, apesar das dificuldades. Ele a lembra que “O Sutra do Lótus é a mais pura verdade” e lhe dá o nome de Nichimyo Shonin, dizendo que ela é “a maior praticante mulher do Sutra do Lótus no Japão.” Seu exemplo de fé pode ser um guia para aqueles que enfrentam grandes desafios em suas vidas.

 

O Traje

Nichiren Shonin tinha muitas seguidoras chamadas Myoho-ama. Esta destinatária é aquela que pode ter vivido em Okamiya na Providência de Suruga. Em 1278, ela perdeu seu marido e seu irmão mais velho, o Senhor Jiro Hyoe de Owari.

Na carta, Nichiren Shonin conta a história de Sanavasa, um mercador que deu assistência a um sacerdote chamado Pratyekabuddha, encontrado inconsciente na praia. Sanavasa cuidou do homem doente até retomar sua consciência, o limpou e o vestiu enrolando-o em um tecido feito de cânhamo. Pratyekabuddha morreu, portanto, confortável e limpo. Como resultado de sua amabilidade, Sanavasa renasceu “no céu da terra” vestindo um traje. Ele se tornou o terceiro transmissor do dharma e um sábio. Ele ensinou por vinte anos.

O nome de Sanavasa vem do traje que ele usou em seu nascimento, conhecido como ‘Tecido de Sana’. Acredita-se que todos os seres dos seis mundos nascem nus, e somente aqueles que nascem nos céus é que nascem vestidos. O tecido de Sana nunca mancha ou fica encardido, como uma flor de lótus em uma poça de lama. O tecido de Sana, dizem, cresceu conforme Sanavasa cresceu e se adaptou às mudanças climáticas. Sanavasa entrou para o sacerdócio sob Ananda, e o traje se tornou as “vestes cerimoniais de gojo, shichijo e kujo,”, que são os cinco, sete e nove faixas do kesa que os monges da Nichiren-shu vestem hoje.

O Buda pregou que “todas as felicidades e maravilhas do Sacerdote Sanavasa resulta desse traje.” Eu penso nesse traje como a representação do Sutra do Lótus, que sempre se mantém intocado e nos permite adaptar-nos a todas as mudanças que ocorrem em nossas vidas. Quando estamos ‘vestidos’ no Sutra do Lótus, nós gradualmente transformamos nossas vidas para sermos corretos, éticos e sábios. Nós também temos a capacidade de transmitir o dharma para os demais através da virtude do caráter de nossas vidas. Este é o verdadeiro traje do dharma.

Grávida da Fé

Em uma carta para a esposa de Matsuno Rokurozaemon-no-jo, uma mulher importante entre os seguidores de Nichiren, Nichiren aponta para o desenvolvimento e a persistência da fé no Sutra do Lótus:

A lua não reflete em águas sujas, e os pássaros não constroem ninhos em árvores mortas. Da mesma forma, Shakyamuni Buda não mora em um corpo de uma mulher sem fé. No entanto, uma mulher que acredita no Sutra do Lótus é como um corpo de água pura. A lua, Shakyamuni Buda, reflete nela.      

Ele continua comparando o desenvolvimento da fé à experiencia da gestação:

De modo figurado, a mulher não pode sentir sua gravidez no início, mas após um tempo ela passa a suspeitar até ter certeza que está grávida… O mesmo pode ser dito sobre as doutrinas do Sutra do Lótus. Se nós acreditarmos nos méritos do Namu-Myoho-Renge-Kyo, Shakyamuni Buda será concebido em nossos corações antes mesmo de sabermos, assim como uma mulher está grávida antes que ela saiba.

Não podemos senti-lo no início, mas conforme os meses passam, nós começamos a sonhar com o Buda residindo em nossos corações, até que sentimos a felicidade dentro de nós… É mais fácil começar a ter fé nos ensinamentos do Sutra do Lótus do que continuar acreditando até o fim dos dias.

Muito pode ser dito dessas poucas frases com respeito à fé e seu desenrolar. Praticantes em tradições baseados na fé podem, sem dúvida, relacionar o crescimento da fé e como nos sentimos conforme a fé se desenvolve. A prática contínua cria vidas que são transformadas de “água suja” a “água pura”, onde os ensinamentos de Buda refletem. Esta transformação afeta a maneira como nos mostramos no mundo, como compreendemos a ascensão da natureza búdica em nossas vidas e corações. Além disso, o caminho da fé não é fácil, especialmente quando o crescimento da fé é geralmente desapercebido até que chega um momento que somos invocados a agir por essa nossa fé.

 

 

SOBRE MYOKEI CAINE-BARRETT

Myokei Caine-Barrett é a reverenda responsável e professora orientadora da Sangha Budista Nichiren do Texas em Houston. Ela tem estado ativa no ministério dentro da prisão e atualmente apoia duas sanghas e indivíduos em todo o sistema prisional do Texas. Ela também é atualmente episcopesa da Ordem Nichiren Shu da América do Norte.

Tradução: Equipe de Tradução da Nichiren Shu Brasil.

Original: https://www.lionsroar.com/nichiren-shonin-a-teacher-of-equality/

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