[O príncipe] Shotoku foi célebre como um estudante profundo da filosofia budista e autor de oito volumes de comentários sobre os sutras do Lótus, de Vimalakirti e de Srimaladevi. Esses comentários são conhecidos como Sangyo-gisho (comentários sobre os Três Textos Sagrados). Essa obra reflete a ênfase característica do budismo japonês e influenciou profundamente seu desenvolvimento, em especial por meio de sua recepção na escola Tendai de Saichô. (…) O Sutra do Lótus (em japonês Hokekyo) expõe de forma lúcida a filosofia Ekayana, e sempre foi considerado no Japão como um dos sutras mais importantes, em especial nas escolas Tendai e Nichiren. O prefácio ao Hokegisho apresenta essa filosofia da seguinte forma:

“Sakyamuni apareceu neste mundo para expor os ensinamentos desse Sutra do Lótus, de modo que todos os seres sencientes, sem qualquer distinção, pudessem ser capazes de um dia alcançar a suprema e verdadeira iluminação por meio da prática das disciplinas fundamentais voltadas para isso. No entanto, os seres sencientes, devido à insuficiência de bons méritos acumulados em suas vidas passadas e devido a sua natureza ignorante por nascimento – e, sobretudo, devido a vários fatores como a época e o ambiente que os impediam de acolher os ensinamentos Mahayana – não estavam preparados para receber os supremos ensinamentos que expunham as causas e condições de Ekayana.

Em vista disso, Sakyamuni usou como recurso pregar os Três Veículos (dos sravakas, pratyekabuddhas e bodisatvas), dando às pessoas os meios de alcançar a iluminação de acordo com suas próprias condições. Daí por diante, ele pregou a doutrina de sunyata, ou a não-substancialidade que transcende a todas as formas, e recomendou às pessoas que a estudassem e praticassem; mais tarde ele pregou a doutrina do caminho do meio e esclareceu os méritos de desméritos das doutrinas Hinayana e Mahayana. Os seres sencientes gradualmente foram se tornando capazes de compreender os ensinamentos de forma mais profunda, após ouvir e praticá-los durante um longo período de tempo. Por fim ele pregou o Grande Veículo Único, apresentando a verdade última do ponto de vista de Dharmakaya, o Corpo Verdadeiro do Buda dotado de todo tipo de virtude. Assim ele conduziu todos os seres sencientes igualmente à única grande iluminação.” (Hanayana Shinsho (org.) Shotoku Taishi: Hokegisho, v.1, p9-12)

shotoku

Ekayana ensina que a iluminação pode ser alcançada universal e igualmente por todos os seres sencientes, sem distinção entre múltiplos e uno, leigo e sacerdote, homem e mulher, ou mesmo entre humanidade e outros seres sencientes. Ele ensina que todas as boas ações têm igual virtude e que todos os seres sencientes no final alcançam a iluminação absoluta, ou natureza búdica. Essa natureza búdica absoluta nada mais é que Dharmakaya, a manifestação da própria verdade, que possui a sabedoria suprema e a vida eterna. Dharmakaya transcende o tempo e o espaço e é livre da mudança e do nascimento e morte.

Embora esses comentários se apoiem em modelos chineses, são frequentes os traços de originalidade. Por exemplo, o capítulo treze do Sutra do Lótus faz uma relação dos vários objetos que um bodisattva não deve buscar – reis, hereges, esportistas, assassinos, monges, monjas, leigos, mulheres – e incentiva, no lugar disso, a concentração da mente num lugar calmo. No comentário, no entanto, mesmo essa meditação é colocada entre as coisas que não devem ser buscadas. Para se propagar o budismo Ekayana, é preciso resistir à atração da solidão. Aquele que deseja compartilhar o destino da nação real e conduzir o povo na vida cotidiana não deve adotar a vida de eremita. Pensar que a meditação num lugar recluso é o único modo de se alcançar a iluminação verdadeira é uma concepção falsa, que não consegue perceber que não há contradição entre ser e não-ser, real e irreal, vir-a-ser e não-vir-a-ser, bem e mal, santo e ignorante, na vida de prática de acordo com o Sutra do Lótus. Essa não-dualidade deve ser encontrada na vida mundana, tanto quanto na vida de reclusão, e a preocupação estreita de tradição Hinayana com esta última deve ser rejeitada pelos aspirantes ao caminho do Buda. Ênfases análogas se encontram no Sutra de Vimalakirti, que ensina que não há uma realidade absoluta separada dos fenômenos e afirma como seu ideal a vida prática do bodisattva leigo. O Sutra de Srimaladevi também ensina que a natureza dos seres sencientes é intrinsecamente pura e que eles podem, sem distinção, se tornar o Buda; o sutra enfatiza que as mulheres podem se tornar o Buda tanto quanto os homens.

Podemos concluir com uma lista das características do budismo japonês, antecipada nos escritos atribuídos ao príncipe Shotoku:

Em primeiro lugar, o pensamento Ekayana baseia-se na ideia de que todos os seres são dotados de natureza búdica, ou o potencial para iluminação. Embora algumas das escolas de tradição Mahayana defendessem o ensinamento dos Três Veículos, correspondendo os três níveis de capacidade humana para a iluminação, somente as que aceitaram o ponto de vista Ekayana floresceram no Japão. Desta forma, o budismo japonês enfatizava que o caminho para a natureza búdica estava aberto a todos e não podia ficar confinada apenas ao que observavam a disciplina monástica.

Em segundo lugar, o budismo Mayahana sempre se ocupou com o significado e o espírito dos ensinamentos mais do que com a adesão rigorosa aos preceitos formais e à doutrina tradicional. Os japoneses interpretaram todos os ensinamentos e as disciplinas da espiritualidade budista e basearam sua prática nessa compreensão.

Em terceiro lugar, no contexto tolerante do budismo japonês, as distinções entre sacerdotes e leigos, masculino e feminino, foram desaparecendo no decorrer da história. A meta das práticas religiosas tanto para sacerdotes como para leigos era a vida de um bodisattva cujo amor e compaixão com relação a todos os seres é ilimitada, exceto que, dos sacerdotes, também se esperava que desempenhassem um papel como líderes na sociedade.

Em quarto lugar, no budismo de tradição Theravada, o processo de se tornar um Buda originalmente exigia um esforço quase sobre-humano durante um período imensuravelmente longo de acumulação de virtudes e méritos no decorrer de incontáveis transmigrações. No budismo japonês, ao contrário, acreditava-se que essa meta suprema podia ser alcançada tanto na vida presente quanto na futura. Embora o caminho para a natureza búdica seja diferente em cada tipo de budismo japonês, a maioria das escolas enfatiza que a libertação com relação ao ciclo de nascimento e mortes pode ser alcançada no período de uma única vida e que não é necessário esperar por ciclos sem fim de nascimentos e mortes pode ser alcançada no período de uma única vida e que não é necessário esperar por ciclos sem-fim de nascimentos e mortes, nem praticar austeridades rigorosas. (…)

Retirado e transcrito do livro: A Espiritualidade Budista, parte 2.

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