– Michael Wenger explica que estudar o sutra do Lótus abriu o sentido de sua prática.

Embora eu não tenha descrito isto na época, olhando para trás, Eu diria que minha primeira década de prática no Zen tenha sido focada em auto-aperfeiçoamento, especialmente em disciplina. Acho que eu aprendi muito, mas a maioria do que aprendi centraliza em mim mesmo: minhas fortalezas, minhas fraquezas, este tipo de coisa. Durante esta época, eu passei três anos em treinamento monástico no Tassajara Zen Mountaint Center, e quando eu retornei, me senti estranhamente desorientado. Eu passei muito tempo examinando e trabalhando em questões pessoais, mas eu não estava particularmente feliz e de fato me senti muito desvinculado de minha vida. Algo parecia estar faltando em minha prática. I comecei a me perguntar, bem, e agora?

Buda

Foi nesta época que eu iniciei um estudo intensivo do Sutra do Lótus.  Eu realmente não poderia explicar porque eu estava tão atraído pelo sutra, ao menos no começo. Não estava claro pra mim mesmo. Depois de um tempo, no entanto, eu percebi que o sutra era pra mim muito menos um texto, mas o verdadeiro cenário de minha vida. Estudar o sutra abriu meu senso de prática. A prática não era apenas sobre mim. O domínio da prática transmitida pelo Sutra do Lótus inclui todo mundo e todas as coisas. Este sentido de incluir todas as coisas era o que estava me faltando.

No leste da Ásia, o Sutra do Lótus tem sido considerado o rei dos sutras. O contemporâneo mestre vietnamita Thich Naht Hanh ecoa esta perspectiva quando descreve o sutra como: “A mais bela flor no jardim dos sutras do budismo Mahayana”. Na introdução de sua tradução para o Sutra do Lótus, W.E. Soothill escreve: “Desde o primeiro capítulo, descobrimos o sutra do Lótus como único no mundo da literatura religiosa. Um esplendor apocalíptico, ele apresenta um drama espiritual da mais alta ordem, com o universo como seu palco, a eternidade como seu período e Budas, deuses, homens, demônios como personagens.” Com sua enorme escala, seus maravilhosos eventos, sua exuberante linguagem, o sutra expressa a visão budista da compaixão com uma força peculiar. De fato, seu poder em inspirar pode até mesmo se tornar um problema, invocando não apenas fé, mas uma espécie de intoxicação. Então, devemos abordá-lo tanto com a mente aberta quanto com cuidado.

Para muitos estudantes ocidentais do Zen, e estudantes de outros caminhos meditativos, o estudo dos sutras, incluindo o Sutra do Lótus, pode parecer um pouco estranho. Nós nos lembramos da descrição do Bodhidharma do Zen como uma “transmissão especial fora das escrituras”. Estamos familiarizados com a famosa história de Hui Neng incendiando as escrituras. É-nos dito para não confiar em “palavras e letras”. Então, nós tendemos em suspeitar do estudo do sutra, pensamos nisto como uma distração intelectual do que é essencial na prática. Há alguma verdade nisso, mas é apenas metade da história.

A outra metade é que o estudo dos sutras tem sido sempre uma parte integral da prática budista. Este é certamente o caso do Zen, especialmente quando se trata do Sutra do Lótus. Em seus próprios escritos, Eihei Dogen, o fundador da escola japonesa Soto Zen, citou o Sutra do Lótus mais do que qualquer outro texto. Em sua obra-prima, Shobogenzo (Um Tesouro da Visão do Verdadeiro Dharma), ele cita o Sutra do Lótus extensivamente, mesmo tirando daí os títulos de alguns capítulos. O título de um capítulo chamado “Butsu yo Butsu” (“Buda e Buda”) refere-se à afirmação do Sutra do Lótus de que “apenas um Buda junto com outro Buda pode compreender a realidade de toda a existência.” No capítulo “Hokke tem hokke” (“O Lótus se torna o Lótus”), Dogen pergunta: “Você se torna o Sutra do Lótus, ou o Sutra do Lótus se torna você?” Em outras palavras, ele está nos dizendo para não sermos empurrados pelo sutra. Não tome o sutra para ser um objeto separado de você mesmo. Em vez disso, torne-se o sutra, e ao fazer isto, você demonstra seu significado diretamente.

O mestre Zen do século XVIII Hakuin Ekaku é considerado o pai do moderno Zen Rinzai, e seu koan “Qual é o som de uma mão?” é um dos mais famosos. Ele também organizou centenas de koans tradicionais em um sistema que é utilizado ainda hoje no treinamento Rinzai. A associação de Hakuin com o estudo de koan é profundo e bem conhecido, bem mais conhecido que seu profundo envolvimento com o Sutra do Lótus. Mas o sutra do Lótus foi crucial para Hakuin. Ele escreveu sobre suas lutas com o sutra, dizendo como suas dúvida e decepção com o sutra abriu caminho para a percepção de que ele era de fato um “registro perfeito” do Buda-dharma. Uma noite, diz ele, sentado estudando o Sutra do Lótus, o barulho de um grilo ocacionou uma experiência de kensho, ou iluminação súbita, em que ele penetrou profundamente no significado do sutra e todas suas dúvidas foram completamente resolvidas.

O Sutra do Lótus é vasto e difícil de entender, como a mente de um Buda. Nós não encontramos nele, como encontramos em muitos outros sutras, uma explicação sistemática de um tema. Como uma força da natureza, o Sutra do Lótus não pode ser domesticado para atender nossos planos.  Isto pode criar problemas quando se tenta ensiná-lo.

Shunryu Suzuki Roshi, o fundador do San Francisco Zen Center e do Tassajara, tentou muitas vezes dar uma série de palestras sobre o Sutra do Lótus. Ele nunca fez isto completamente. Ele começava falando sobre quem estava presente – os vários Budas, bodhisattvas, deuses, criaturas mitológicas, discípulos e assim por diante – e logo era a hora de terminar a palestra. Na aula seguinte, ele comçava novamente, e a mesma coisa acontecia. Mas talvez isto era o suficiente.

Quando eu comecei a estudar o Sutra do Lótus, eu ficava procurando por sua mensagem explícita. Eu nunca a encontrei. Isso não quer dizer que o sutra não tem ensinamentos. Na verdade, ele está repleto de ensinamentos, sobre como os Budas usam vários meios hábeis para conduzir os seres à libertação, como todos os seres tem a capacidade de atingir a iluminação, sobre o poder da fé no Buda, sobre a natureza da mente iluminada que não tem começo, nem fim, e assim por diante. Mas tudo isso é apresentado não como o real ensinamento do Sutra do Lótus, mas como um tipo de preparação para ouvi-lo. Eu me perguntava por que o texto vai e vai criando o cenário para a pregação do sutra, mas nunca parece realmente chegar a ele. Eventualmente me dei conta de que o texto está atraindo você para uma experiência. Ele te coloca exatamente ali mesmo, praticando com inúmeros outros na presença dos Budas. Esta é a mensagem.

Quando eu palestro sobre o Sutra do Lótus, eu costumo começar com o koan “Manjushri entra no portão”, o primeiro caso da coleção do clássico A Flauta de Ferro. Na mitologia budista, o bodhisattva Manjushri é a personificação da sabedoria, e uma estátua dele fica em cima do altar principal nas salas de meditação Zen-budistas. No koan, o Buda chama Manjushri, que está do lado de fora da porta do templo, “Manjushri, Manjushri, porque você não entra?” Manjushri responde, “Eu não vejo qualquer coisa daqui de fora do portão. Porque eu deveria entrar?”

Eu gosto da resposta de Manjushri, mas parece um pouco dissimulada. Ele está dizendo que ele não consegue discriminar entre o que está dentro do portão e o que está de fora. Mas, ainda assim, ele opta por não entrar. Então, eu acho que ele não vê a diferença. Talvez ele devesse aceitar o convite do Buda para entrar no templo. Verdadeiramente entrar no portão – verdadeiramente conectar-se com os ensinamentos do Buda – é experimentar diretamente que não existe dentro e fora. Isto não é apenas uma idéia: você não pode entender isto pelo lado de fora. Ao entrar, no entanto, não ache que você está dentro e os outros ainda estão lá fora. Todo mundo entra com você.

Entrar no portão significa entrar em sua vida. Entrar no Sutra do Lótus significa entrar em sua vida. Isto é prática. Praticar significa permitir que o Sutra do Lótus entre em você. Praticar desta maneira é arriscar ter seu entendimento das coisas revirado, não uma, mas várias vezes. Para isto é necessário fé, fé o suficiente para arriscar a própria fé. Portanto, temos uma escolha. Podemos assistir a vida acomodados na margem, ou podemos arriscar nosso orgulho, nossas idéias, e tudo aquilo que nós usamos para separar nós mesmos dos outros e saltar profundamente dentro de nossas vidas. Dê este salto e você encontrará o Sutra do Lótus aonde quer que você vá.

*Sobre o autor: Michael Wenger é o Decano (autoridade) em estudos budistas no San Francisco Zen Center; e o editor de Wind Bell: Teachings from the San Francisco Zen Center, 1968-2001.

**tradução livre do texto Entering the Lótus, publicado no site Tricyle.com: http://www.tricycle.com/special-section/entering-lotus-0 (esta tradução não deve ser publicada fora deste site sem a autorização do autor e do site Tricycle, para não prejudicar quem traduziu e nem ferir direitos autorais)

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