Por Reverendo Ken’yo Mitomo, Professor Ph.D., Universidade Rissho

Exatamente há 1600 anos atrás (406 A.D.), um sutra sânscrito com um título elegante, o Ensinamento da Flor do Lótus Branco, foi traduzido para o chinês por Kumarajiva. Desde então, esta tradução chinesa altamente sofisticada tem atraído muitas pessoas como uma fonte de inspiração.

A mãe de Kumarajiva era uma irmã do rei de Kucha. Quando Kumarajiva tinha nove anos de idade, sua mãe atravessou com ele o Rio Indus e o levou para aprender os Três Cestos do Theravada em Kashmir. Em seguida, eles foram para Kashgar e sua mãe o encaminhou para estudar Budismo Mahayana com Suryasoma. Dizem que naquela época, Suryasoma concedeu o Sutra do Lótus para Kumarajiva declarando: “este sutra está destinado a se espalhar para o nordeste. Você deve divulgá-lo”.

Com o tempo, o talento notável de Kumarajiva ressoou até o palácio de Qin Anterior na China. O Rei Fu Jian despachou o General Lu Guang com um batalhão de 70.000 guerreiros para capturar Kumarajiva em Kucha. O General Lu Guang era um homem rude. Para seduzir o jovem e talentoso Kumarajiva, ele o forçou a ingerir bebida alcoólica e o confinou em um quarto trancado com uma princesa de Kucha. Não sabemos se Kumarajiva teve um relacionamento íntimo com ela naquela noite, mas não importa o quanto ele tenha resistido, ele se tornou um monge desertor, segundo os preceitos rígidos do Hinayana, após ingerir bebida alcoólica ou passar uma noite com uma mulher. Este rótulo humilhante influenciou fortemente a ideia dos preceitos budistas de Kumarajiva que nasceu numa família real e foi uma vez honrado como um fenômeno. Esperava-se que ele fosse um grande monge como Upagupta se ele pudesse manter os preceitos até atingir 35 anos de idade, mas ao contrário, ele ficou cativo do General Lu Guang.

Ao permanecer em Guzang (Wuwei), Kumarajiva no auge de sua idade, entre 36 e 52 anos, teve que servir Lu Gang como um conselheiro político e um adivinho.  Ironicamente, no entanto, esta experiência o tornou proficiente no idioma chinês e ele cultivou as bases da grande e delicada tradução do Sutra da Flor do Lótus do Dharma Maravilhoso. Durante este período, ele também ensinou Madhyamaka (Contemplação do Caminho do Meio) para Seng Chao, que veio de Changan e mais tarde se tornou seu discípulo proeminente.

Na mesma época em que Lu Guang se tornou o Rei de Liang Posterior, Yao Chang fundou a Dinastia Qin Posterior em Changan. Yao Chang tentou convidar Kumarajiva, mas a negociação foi bloqueada e ele acabou falecendo. Depois, seu sucessor, Yao Xing também acreditava profundamente no budismo e tentou cumprir um desejo antigo acalentado por seu pai, implorando à Liang Posterior para permitir a vinda de Kumarajiva para Changan. Entretanto, Liang Posterior recusou o pedido novamente, até que em 401, Yao Xing finalmente despachou as forças armadas, derrotou Liang Posterior e levou Kumarajiva para Changan em segurança. Finalmente Kumarajiva foi libertado do cativeiro de 16 anos imposto pelo Liang Posterior após a destruição do seu país, ter sido forçado a renunciar sua fé e ter permanecido no humilhante cativeiro.

Ao convidar Kumarajiva para ficar em Changan, Yao Xing planejou traduzir sutras budistas para o chinês com um recurso financeiro enorme. Então em Changan, 3.000 membros das elites se reuniram com Kumarajiva e foram planejadas as traduções de vários. Tão logo Kumarajiva chegou naquela cidade no 20º dia do último mês de 401, as traduções começaram no final daquele mês.

Kumarajiva estava então com 52 anos de idade. No total, ele traduziu um número enorme de escrituras – até 35 trabalhos contendo 294 fascículos – embora um monge estrangeiro próximo a ele tenha dito que, “Kumarajiva teve tempo para traduzir menos do que um décimo do que ele tinha memorizado”. A tradução do Sutra da Flor do Lótus do Dharma Maravilhoso na qual o próprio Rei Yao Xing participou foi concluída no verão de 406 no Grande Templo de Changan.

Lamentando que a linhagem de Kumarajiva seria perdida, Yao Xing pressionou dez mulheres para seduzi-lo. Uma vez, pelo capricho de Lu Guang, ele foi forçado a beber e passar uma noite com a princesa de Kucha, e agora em sua meia idade, ele foi novamente forçado a obedecer a ordem do rei para poder continuar a realizar seus trabalhos de tradução. Por causa disso, ele tinha que se deslocar para o escritório de tradução dentro do templo sem residir lá. Dizem que Buddhayasha, um budista erudito famoso, teria lamentado: “Kumarajiva é como algodão bom e macio, mas por que ele tem que ser colocado entre espinhos?”. Deve ter sido muito difícil para Kumarajiva pregar o Dharma diante de 3.000 monges de elite sentindo remorso por trair os ensinamentos de Buda. Toda vez que ele começava os trabalhos de tradução, ele costumava dizer: “como as flores do Lótus florescem na lama, por favor apanhe as flores, mas não a lama”.

Nessa época, ele começou a traduzir o Sutra Buddha-Pitaka, no qual estão dispostos os preceitos doMahayana. É pregado neste sutra que “A realidade de todos os fenômenos é indestrutível e não criada. Quando não se compreende isto, se está contra os preceitos mesmo que os mantenha. Abandonar a teoria inútil da discriminação significa manter os preceitos”. O Sutra do Lótus também prega “Manter os 250 preceitos não significa mantê-los na realidade. Manter o Sutra do Lótus, mesmo temporariamente, significa manter os preceitos sem ser atingido por leis mundanas, pois as flores de Lótus florescem na água”.

Isto deve ter sido a perspectiva básica de Kumarajiva. Ele faleceu no 20º dia do 8º mês em 409 aos 60 anos de idade. Quando ele estava para morrer, ele alertou, “Se não houver erros na minha tradução, minha língua não poderá ser queimada quando meu corpo for cremado”. Dizem que nas cinzas dele, sua língua permaneceu sem ser queimada.

Agora seu túmulo está localizado dentro do Templo Caotangsi próximo a Xian. Olhando do Sul para o túmulo de Kumarajiva, você pode entender o porquê ele foi cremado lá. O Monte Chungnan se expande diante de você e a extremidade direita daquela montanha lembra imediatamente a Montanha da Águia Sagrada na Índia, onde Sakyamuni Buddha pregou o Sutra do Lótus.

Há uma frase no Sutra do Lótus, Capítulo 16, que Kumarajiva traduziu como “O Buda sempre fica na Montanha da Águia Sagrada”. Pensando sobre Sakyamuni Buda na Montanha Grdhrakuta, Kummarajiva deve ter desejado construir seu tumulo lá. O Sutra da Flor do Lótus do Dharma Maravilhoso, concedido à Kumarajiva por Suryasoma, dizendo “Este sutra está destinado a se espalhar para o nordeste”, estará sempre vivo na crença das pessoas do Sudoeste Asiático.

 

 

(*) Artigo publicado no Nichiren Shu News em agosto de 2006 e traduzido pela equipe de traduções da Nichiren Shu Brasil em abril de 2019.

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