*Extraído do livro A Espiritualidade Budista, Livro 1. Parte 2: A escola Mahayana. Capítulo 7: Os Sutras, pag. 188-204
A fase criativa inicial do budismo de tradição mahãyãna, em geral identificada no primeiro século a.C., caracteriza-se pelo acréscimo sutil de ajustes devocionais, meditacionais e intelectuais ao budismo tradicional. O padrão desses ajustes, presente nas porções mais antigas dos sutras da Perfeição da Sabedoria e do Lótus, pode ser considerado como um comentário minucioso ao budismo na época existente. No entanto, esse padrão desenvolveu sua dinâmica própria tão rapidamente que os próprios sutras receberam uma ampliação impressionante e muitos outros foram compilados, nesse mesmo espírito. Além disso, as relações entre as práticas e as idéias-chave eram tais que temas a princípio apenas sucintamente anunciados passaram claramente para o primeiro plano nos desenvolvimentos subsequentes da “consciência-unicamente”, a afirmação de que todos os seres possuem a natureza búdica, a doutrina dos três corpos (trikãya) relativa à natureza do Buda, ou antes dos budas em sua multiplicidade, a prática de evocar e invocar o nome do Buda ou de um bodisatva, e a abertura radical de um caminho leigo no budismo. O desenvolvimento dessas ideias foi acompanhado por uma magnífica elaboração da pespectiva cosmológica e mitológica e de um contínuo enriquecimento da religiosa propulsora por trás disso. Qual a perspectiva espiritual fundamental que tornou possível a combinação de uma fama tão ampla de ideias e práticas?
A Reelaboração da Doutrina Mahãyãna e a Noção de Meios Hábeis
A essência da tradição Mahãyãna não se encontra numa doutrina particular, mas numa atitude ou orientação espiritual que torna possível ver sob a nova luz todos os elementos da tradição budista. O aparecimento dramaticamente transcendente do Buda no Sutra do Lótus, por exemplo, muitas vezes já comentado, por si só, não faz dele um texto Mahãyãna. A seu próprio modo, o Mahãvastu da escola Mahãsãnghika estabelece uma concepção semelhante do Buda, que, numa famosa passagem, é descrito como supramundano (lokottara). De acordo com essa doutrina, o Buda aparece na forma humana somente para estar em harmonia com as exigencias do mundo. Em seu ser verdadeiro, ele está acima e além do mundo, é ilimitado no tempo e no espaço. Essa concepção pode ser considerada como um dos ingredientes que tornaram possível a espiritualidade Mahãyãna e, no entanto, por si só, ela não oferece a essência dessa espiritualidade. Ela é uma projeção cosmológica do princípio da iluminação budista, que dá ao Buda um estatuto superior ao de um mero ser humano exemplar, uma afirmação mitológica de crença em que a iluminação alcançada pelo Buda histórico está em harmonia com a própria substância do universo. Essa tendência pode ser observada mesmo no budismo dos textos em páli e, iconograficamente, nas imagens gigantescas que mostram o Buda como um “super-homem”, ou “grande ser” (mahãpurusa).
No Sutra do Lótus, vemo-nos diante de um Buda transfigurado, que prega no Pico do Abutre, que é capaz de iluminar com a luz entre os olhos uma imensidão de outros mundos, enchendo de assombro sobrenatural os que se reúnem para ouvi-lo. Mas de que forma a doutrina de um tal Buda vai além dos ensinamentos do Mahãvastu? Os leitores ocidentais às vezes se prendem às imagens fantásticas do texto e não conseguem ver nele nenhum novo conteúdo. A busca de novos temas doutrinais os leva ao capítulo 16, onde eles se deparam com a ideia de um Buda cuja vida tem extensão ilimitada, um Buda cuja natureza transcende os oitenta anos da vida histórica de Sãkyamuni:
“Em todos os mundos, deuses, homens, asuras, todos dizem que o atual Buda Sãkyamuni deixou o palácio do clã dos Sakya e num lugar não distante da cidade de Gayã, sentado sobre a Plataforma do Caminho, alcançou anuttarasamyaksambodhi (suprema iluminação perfeita). E, no entanto, oh homens bons, desde que efetivamente alcancei a iluminação budista, passaram-se incalculáveis e ilimitadas centenas de milhares de miríades de milhões de nayutas de kalpas.”
Mas a verdadeira originalidade da budologia do Sutra do Lótus está na sutil dialética reflexiva entre o Buda de vida ilimitada e o Buda da tradição mais antiga. Isto é, o leitor é requisitado a interpretar a vida manifesta do Buda, de oitenta anos, e a subsequënte entrada no nirvana de uma forma, como meios (upãya) habilmente empregados para dar confiança na possibilidade de se alcançar o nirvana:
“Aquele que Assim se Tornou Um (Tathãgata), vendo o desejo dos seres por um Dharma menor, vendo suas poucas qualidades e sua grace degeneração, prega a essas pessoas dizendo: “em minha juventude deixei minha casa e alcancei o anuttarasamyaksambodhi”. No entanto, passou-se um tempo assim tão longo desde que efetivamente alcancei a iluminação budista. É somente por recorrer a um meio apropriado, a fim de ensinar e converter os seres vivos para que eles possam encetar o Caminho do Buda que falo palavras como essas.”
É preciso demonstrar aos seres vivos presos à sucessão cármica do nascimento e morte (samsãra) que é possível alcançar o nirvana. Ao mesmo tempo, continuar a pensar na duração da vida de oitenta anos e na progressão de um estado de samsãra para outro estado, denominado nirvana, seria permanecer preso ao domínio do próprio pensamento discriminador do qual se está buscado escapar. A visão de um Buda cuja vida tem duração ilimitada tem em vista impedir esse insidioso perigo espiritual.
Tendo isso em mente, todo o teor do Sutra do Lótus torna-se claro. Repetidas vezes, ele reafirma que o Buda ensinou por meios de uma grande variedade de meios, a fim de atrair e guiar os seres vivos. A natureza e a condição cármica dos seres vivos são muito diversas, mas todos eles precisam de um mesmo Darma numa forma apropriada. Assim, eles se assemelham à imensidade de gramas, ervas e árvores, que precisam todas da mesma água de chuva vinda de uma mesma fonte (capítulo 5). Na alegoria de casa em chamas, o princípio é apresentado na forma de uma história (capítulo 3). Nessa passagem, lemos, com numerosos detalhes, como o rico chefe de família atrai os filhos para fora através dos labirintos de uma enorme casa que eles não percebem estar em chamas. A casa representa o mundo tríplice, assolado pelo nascimento, a velhice, as doenças e a ansiedade constante. Como as crianças estão absortas com seus brinquedos, o pai lhes oferece carros para brincar, lá fora. Esses carros serão puxados de formas variadas, por cabras, cervos e bois. Uma vez lá fora e em segurança, as crianças perguntam por seus carros e cada qual recebe um carro idêntico, magnificamente ornamentado com pedras preciosas e puxado por um boi branco. Os carros puxados por cabras são interpretados como representando o público que se inicia nos ensinamentos do Buda (srãvakas); os puxados por gamos representam os que, em harmonia com os ensinamentos do Buda, buscam o conhecimento que se autoconfirma e a quietude (pratyekabuddhas); os puxados por bois representam os discípulos que seguem plenamente o caminho do Buda, até que eles próprios possam trazer libertação para os outros (bodisatvas). Desses três “veículos”, o terceiro é o Mahãyãna, na medida em que se destingue dos outros. No entanto, a relação polêmica entre eles se resolve com o aparecimento do carro superior, puxado por um boi branco, que é o que se pode denominar Mahãyãna abrangente. Assim, o novo veículo, concebido como o caminho do bodisatva, não deve atrair espiritualmente mais que as concepções anteriores do budismo. No centro da doutrina Mahãyãna encontrava-se uma tentativa de relativização de suas próprias formas de expressão.
A conexão com o pensamento do vazio está implícita em todo o Sutra do Lótus e às vezes é claramente manifestada. Assim um homem cego que recebeu novamente sua visão é um modelo da pessoa que está livre da cadeia cármica de renascimentos, mas ainda deve prosseguir a fim de “alcançar todos os darmas”. Isso significa que “ele vê o mundo da esfera tripla em suas dez direções como vazia, uma ilusão forjada, uma criação fictícia, um sonho, uma miragem, um eco. Ele vê todos os darmas como não-originados, não-suprimidos, não-contidos, não-incontidos, não-escuros, não-luminosos”. Assim ele está liberto da polaridade entre o nascimento cármico e a extinção cármica. Nesse aspecto, o Sutra do Lótus se equipara aos sutras da Perfeição da Sabedoria e dos Ensinamentos de Vimalakirti. A “sabedoria” assim concebida é um dos temas fundamentais percorrento toda a espiritualidade Mahãyãna e é a mais alta das seis “perfeições” que devem ser cultivadas por um aspirante a bodisatva. O significado dessa “sabedoria” é, no entanto, muito preciso. Não se trata de uma sabedoria moralizante nem de uma genérica sabedoria da vida. Ao contrário, essa sabedoria significa uma visão da natureza verdadeira dos elementos ou fatores da experiência (darmas), a percepção de que esses fatores são “vazios” de significado metafísico substancial ou, na expressão do Sutra do Coração, que eles são vazios de “ser próprio”.
Muitas metáforas regularmente empregadas para transmitir esse significado – sonho, miragem, eco, ilusão forjada – aparecem em sutras que nem sempre estão estreitamente relacionados entre si. É de especial interesse o fato de que todo esse mode de pensar, ou ver, seja característico não apenas dos sutras da Prfeição da Sabedoria mas também do Sutra de Lankãvarãra. Essa obra também apresenta uma forte tendência a considerar as formas dos ensinamentos como construções provisórias, a ser usadas e depois abandonadas. Ao mesmo tempo, o Sutra de Lankãvatãra tem um sabor todo próprio. Ele enfatiza a necessidade de se voltar para o próprio interior (parãvrtti) para que seja possível controlar as atividades ordinárias da mente. Normalmente nós percebemos o mundo como que a partir de um ponto privilegiado, o ponto privilegiado e isolado de nossos próprios eus subjetivos. O mundo exterior é objetificado, selecionado e avaliado pela atividade de nossa mente, sempre errante e em movimento. Isso leva a todo tipo de apegos e ilusões. Para superar isso, é necessária uma reorientação radical, um retorno ao ponto de partida da atividade consciente. Por meio disso, o pretenso eu desaparece e em seu lugar se percebe uma magnifica “consciência-receptáculo” (ãlaya-vijñãna), que envolve todo o universo que até então se considerava como existente, por assim dizer, objetivamente. Não existe eu, nem mndo, nem discriminação – somente uma consciência que tudo abrange. Essa abordagem recebeu um enorme desenvolvimento complementar na escola Iogacara e teve grande influência sobre o budismo tanto tântrico quanto Zen.
Esses temas relacionados entre si no pensamento Mahãyãna primitivo, têm todos eles duas improtantes características em comum. Em primeiro lugar, todos eles são meditações que expandem temas que já eram amplamente discutidos no budismo: o vazio, a consciência ,a análise dos fatores da experiência. Em segundo lugar, e ao mesmo tempo, todos eles buscam abaar noções ficas, mas não em benefício da mera polêmica filosófica, e sim a fim de alcançar um estado espiritual livre do apego a certos aspectos particulares. “Um bodisatva não deve se apegar nem a um Darma nem a um não-darma”, como afirma o Sutra do Diamante. Mas, a escola Mahãyãna tem uma teoria da relatividade das formas do próprio ensinamento budista. Além disso, afirmava-se que essa compreensão da própria natureza da mensagem budista era fiel ao original. Isso explica por que, no Sutra do Lótus, existe uma longa repetição da velha história da decisão do Buda de ensinar, em vez de permanecer em silêncio. A história, numa versão modificada (capítulos 2 e 7), enfatiza o caráter provisório dos ensinamentos e, assim, permite aos que progridem no caminho da visão que se libertem do apego a um ou outro aspecto determinado.
A Iluminação Budista Universal
Um tema implicito, mas não muito desenvolvido nos primeiros sutras da tradição Mahãyãna é o ensinamento da presença da iluminação budista em todos os seres. Esse tema se tornou particularmente popular na China, próximo ao início do século V d.C., com a publicação de traduções de uma forma Mahãyãna do Sutra de Mahãparinirvana. Essa obra é uma meditação que divaga livremente sobre a história do nirvana final do Buda. Não se deve confundi-la com o paralelo em sânscrito, do período pré-Mahãyãna, do bastante conhecido sutra em páli sobre o último estágio da vida do Buda. O texto Mahãyãna tem muito em comum com o Sutra de Lótus, ao qual ele se refere explicitamente. Em primeiro lugar, ele também retoma o tema da duração ilimitada da vida do Tathãgata, que surge naturalmente da reflexão sobre sua suposta entrada no nirvana. Sua importância subjetiva está em que ele não se vincula à ideia de que o Buda viveu oitenta anos. Ao contrário, somos convidados a reverenciar um Buda que, na verdade, está sempre presente. Vinculada a isso, e também em comum com o Sutra de Lótus, está a ênfase nos meios hábeis e a idéia de que as formas particulares dos ensinamentos destinam-se a adaptá-los às necessidades dos ouvintes. Não é de se admirar que um sistema posterior, o sistema da escola de T’ient’ai, classifique tanto o sutra do Lótus quanto o do Nirvana como o ponto mais alto dos ensinamentos do Buda.
É a luz disso que deve ser entendida a idéia de iluminação budista – ou, mais precisamente, de natureza búdica de todos os seres vivos. Mais uma vez nos encontramos diante de um modo de falar que é paradoxal. Um número incontável de seres vivos é visto percorrendo seu caminho rumo a uma meta na qual, em sua verdadeira natureza, eles já se encontram. Assim como o Sutra de Lótus afirma que todos os dharmas possuem desde o início a qualidade do nirvana, também aqui se declara que todos os seres vivos possuem a natureza de Buda. Não se deve imaginar essa “natureza búdica” como alguma realidade metafísica que agora se percebe. Ela é na verdade simplesmente um sinônimo da natureza de um Tathãgata, isto é, a qualidade de ser “assim sobrevindo”, ou um sinônimo de “libertação” ou nivrvana. A natureza búdica, assim como o espaço, não é um elemento condicionado ou composto, nem um aspecto da existência. Assim, pode-se dizer que ela se apresenta “com características e sem características; nem com características nem sem características”. Quanto a isso tudo, não há nada de inusitado. O que, afinal, poderá ser a natureza do Buda, se não o ter “ido absolutamente além” (Sutra do Coração)? O paradoxo surge na atribuição dessa natureza búdica a seres vivos que, com toda certeza, são existências compostas com uma grande variedade de características. A chave para se compreender o paradoxo está em vê-lo, não em termos estáticos, mas sim em termos dinâmicos. A “natureza búdica” é uma designação que ajuda-nos a nos afastar das características. Embora os seres vivos tenham características, eles podem deixar de estar ligados a elas. Isso ocorre quando vemos as coisas de uma outra forma, neste caso, quando vemos os seres vivos como tendo a “natureza do Buda”.
A diferença entre os seres vivos como os consideremos normalmente e os seres vivos como os consideremos em termos de sua natureza búdica é uma diferença qualitativa. Por essa razão, o Sutra do Nirvana foi uma fonte de inspiração para os que, como Tao-Sheng (397-432) e outros depois dele, viam-se fascinados pela idéia de iluminação súbita. Se não há distância a cobrir, como pode a jornada ser longa e gradual? No entento, há também claras indicações no próprio utra de que a natureza do Buda era considerada como uma qualidade latente que podia torna-se manifesta pela prática constante da via religiosa. Dessa forma, “assim como os seres sencientes não podem ver as raízes da grama e a água subterrânea porque elas estão ocultas no solo, o mesmo é verdade da natureza búdica, que os seres sencientes não podem perceber porque não praticam os caminhos religiosos.”
Num estilo mais enigmático, o tema também é esboçado no Sutra de Lankãvatãra, no qual a base fundamental de todo ser verdadeiro é descrita como o “ventre do Tathãgata” (Tathãgata-garbha). Ele é o mesmo que a sede da consciência, ou “consciência-receptáculo” (ãlaya-vijñãna), que, num determinado aspecto, dá origem a uma visão diferenciada do mundo, que separa uma área da realidade supostamente objetiva de um princípio ou eu que deseja e interroga, mas que, num outro aspecto, nada mais é que uma reflexão integrada desses fenômenos aparentemente diversos. A visão diferenciada tem como base a ilusão. Quando nos afastamos dessa diferenciação ilusória e retornamos à unidade da consciência-receptáculo, então o Tathãgata, ou a qualidade “assim suprimida”de todas as coisas, se tornará manifesto. Essa qualidade não é o alcançar de algo novo e isolado, Ao contrário, ela é a qualidade original de todas as coisas, presente desde o início da própria matriz da consciência.
Os três Corpos do Buda
A explicação sobre os três corpos (trikãya) do Buda é uma construção doutrinária que tem exercido grande atração sobre a imaginação ocidental. Essa doutrina não se encontra nos primeiros sutras da tradição Mahãyãna, mas se origina um pouco mais tarde, com o objetivo de correlacionar diferentes percepções do Buda com a experiência efetiva. Ela deve ser vista como uma tentativa, em meio a diversas outras, de dar expressão à ideia de que a natureza búdica é percebida presente em toda parte. mesmo no budismo pré-Mahãyãna, o número de budas nos mundos precedentes e em mundos espacialmente diferentes havia aumentado dramaticamente, como se pode ver claramente nos textos do Mahãvastu. Assim, havia um problema geral acerca da relação entre as várias manifestações da iluminação budista e, cada vez mais, a solução desse problema foi sendo formulada em termos da doutrina dos três corpos.
Um excelente exemplo de uma das primeiras concepções do Buda na tradição Mahãyãna encontra-se no capítulo 11 do Sutra do Lótus, no qual o Buda “extinto” Prabhutaratna (Muitas Jóias) aparece no céu para comprovar, de uma perspectiva cósmica, os ensinamentos daquele que era o Buda atual, Sakyamuni. Mas como pode reaparecer um Buda que há muito chegou ao nirvana final? O primeiro sinal de sua presença é o aparecimento de um magnifico stupa miraculosamente suspenso no céu. Esse stupa contém, numa forma condensada, o “ser próprio” (ãtmabhãva) d Tathãgata Prabhutaratna. Assim ele aparece, no momento da proclamação do Sutra do Lótus, como o resultado de um voto feito por ele em eras anteriores, antes de sua chegada ao nirvana final:
“Essas são as entradas sobrenaturais do Buda, tal a força de seu voto que, nos mundos de todas as dez direções, onde quer que alguém pregue o livro sagrado da Flor do Darma, seu stupa adornado com pedras preciosas sempre se avoluma diante dessa pessoa, todo seu corpo no stupa aclamando com as palavras: ‘Excelente! Excelente!'”
Sakyamuni é apresentado erguendo-se para chegar ao stupa celestial, cuja frente ele então abre. Dentro, vemos a figura de um Buda ascético, descrito no texto como “imagem do Tathãgata” (tathãgatavigraha). Essa “imagem” é uma projeção do princípio indestrutivel da natureza do Buda, que assim pode se tornar visível em milhares de mundos. Para completar a visão, Sakyamuni adentra o stupa e senta-se ao lado de Prabhutaratna, com isso indicando que todos os budas se equivalem entre si. Toda a cena dramatiza a ideia de que podemos confiar em todo Buda que apareça numa determinada época e lugar para conduzir os seres vivos até a iluminação. O tema dos dois budas sentados lado a lado foi bastante popular na iconografia da Ásia central e do noroeste da China.
O aparecimento e atividade das grandes figuras de salvadores no budismo de tradição Mahãyãna – Amitãbha, Avalokitesvara, Bhaisajyarãja, (Buda da Medicina), Samantabhadra e outros – baseia-se em seu poder de atuar de uma forma que transcende o tempo e até mesmo o nirvana. Os votos de um grande bodisatva de salva todos os seres vivos operam indefinidamente, enquanto houver seres vivos que precisam de ajuda. Assim a distinção entre um bodisatva e um Buda perde todo significado prático para o devoto. Teoricamente Avalokitesvara é um bodisatva que assume muitas formas diferentes enquanto o bodisatva Dharmãcara já se tornou o Buda Amitãbha, que reside em seu campo do Buda (buddhaksetra) e acolhe os que se condiam a seus votos. Essa relação é retomada no Sutra de Lankãvatãra, no qual podemos ler: “os outros (…) são os que terminaram praticando as ações de um bodisatva; eles são formas do Buda de Transformação. Com os meios hábeis que têm origem em seus votos originais e fundamentais, eles se manifestam em meio a multidões, para adornar as congregações de budas”.
Com a noção de “Buda de transformação” no Sutra de Lankãvatãra, chegamos a um dos principais precursores da doutrina dos três corpos. Esse sutra do buda-nirmãna,que transmite os ensinamentos elementares da meditação e moralidade. Esse Buda aparece em meio às contingências corriqueiras da vida cotidiana, como fez por exemplo, o Buda Sakyamuni. Seus ensinamentos são necessariamente emitidos em termos das diferenciações que os seres vivos normalmente fazem ao lidar com seu ambiente. A tarefa de conduzir os seres vivos para além dessa visão das coisas cabe ao buda-nisyanda, uma projeção gloriosa da natureza última do Buda, que inspira o devoto a ter consciência do “vazio” dos fenomenos corriqueiros e a transcender a distinção entre ser e não-ser. O terceiro, mas ontologicamente anterior, é o buda-dharmatã, a natureza búdica em seu autêntico modo próprio, não ornamentada com características destinadas a atender as necessidades dos que precisam ser salvos e guiados. Esses três aspectos da natureza búdica podem ser interpretados como correspondentes à sequencia Hinayãna, Mahãyãna , e como realizados no Mahãyãna, A distinção mais antiga entre rupakãya e dharmakãya, isto é, o corpo de forma terrestre e o corpo do Darma (que toma o lugar do Buda histórico após sua morte), se completa aqui com um terceiro foco, que reflete a espiritualidade Mahãyãna típica.
A formulação do trikãya foi particularmente preferida pela tradição Iogacara e assumiu forma erudita e sistemática no capítulo 9 do Mahãyãna Sutralamkara. É nele que encontramos a terminologia mais frequentemente citada, embora relativamente tardia: svabhãvikakãya (corpo de ser próprio), sambhogakãya (corpo de êxtase, de felicidade), nirmãnakãya (corpo de transformação). Uma explicação antologica aparece em O Despertar da Fé no Mahãyãna que, com quase toda certeza, foi composto na China no século VI d. C. A atribuição que tradicionalmente se faz dessa obra a Asvaghosa induziu à suposição comum, mas equivocada, de que a doutrina dos três corpos já era adotada no período inicial de formação do budismo de tradição Mahãyãna. No entanto, que sua influência era generalizada pode-se observar no fato de que o Sutra de Suvarnaprabhãsottama contém todo um capítulo sobre o tema (que também não se encontra na versão em sânscrito). Nessa explicação, fica suficientemente clara a relação dialética entre, de um lado, os corpos com características e, de outro, o dharmakãya sem características.
Outros sutras que celebram uma visão estreitamente vinculada a essa dos muitos budas emanando de uma realidade são o Sutra de Avatamsaka e o Sutra de Suramgamasamãdhi. Neste último sutra, lemos sobre os muitos tathãgatas que são não-nascidos, não compostos, não-diferenciados, fundamentalmente iguais e também iguais a todos os darmas em sua vacuidade. Mas como o Tathãgata que assim “entrou na igualdade de todos os darmas” continua a “manifestar seu magnífico corpo material aos seres vivos?”. A resposta é que isso se deve à continuidade do poder do samãdhi que ele anteriormente praticava. Na versão chinesa do Kumãrajiva, afirma-se que os tathãgatas são, em sua igualdade, “verdadeiramente reais”, mas Lamotte assinala que, embora na versão tibetana eles sejam descritos como igualmente “não-reais”, quase não importa qual dos termos é empregado. Para resumir, a realidade de um Tathãgata está em sua qualidade imutável de não ser atraído pelas características de uma existência ilusória e em mudança. No longo Sutra de Avatamsaka, nós lemos a respeito de um número imensurável de budas em todas as terras do Buda das dez direções (oito quadrantes, zênite e nadir). Todos esses budas se manifestam em “corpos” num número igual ao das partículas de poeira encontradas em todos os mundos. Mas é a vocação de um bodisatva – após ter-se empenhado em compreender os ensinamentos de todos esses budas – compreender também que os budas são “não-reais”. Seu verdadeiro caráter é assinalado pelo prajñã do cultivo.
Práticas Devocionais
A imaginação indiana não sentia dificuldade em apresentar um grande número de budas com nomes ligados às ideias de luz e tesouro, como por exemplo o Buda do Brilho da Flor (Sutra de Lótus, capítulo 3) ou o Buda das Muitas Jóias (capítulo 11). Nem os tradutores chineses deixaram de empregar recursos de seu notável sistema de escrita, para oferecer traduções literais e expressivas. Assim os próprios nomes dos inúmeros budas podiam ser usados como foco de convergência para uma forma devocional de meditação que conseguia superar a distância linguística entre a Índia e a China. A prática é conhecida em sânscrito como buddhãnusmrti e em chinês como nienfo. Esses termos referem-se à evocação de um Buda específico pelo nome. O Nome é em geral pronunciado, mas sua expressão física não é indispensável. No início da fórmula, inclusive do nome, encontra-se a palavra namah (em chinês, na-mo; em japonês namu), que significa “saudações a”. Ela se encerra o termo “Buda” ou “bodisatva”. São exemplos elementares: “Saudações ao Buda Sakyamuni” e “Saudações ao bodisatva Avalokitesvara”. Neste último caso, pressupõe-se que invocar o nome do bodisatva ajudará em momentos de perigo.
“Se, novamente, o homem que está para ser assassinado invoca o nome de bodisatva Ele Que Observa os Sons do Mundo [Avalokitesvara], então as facas e varas ostentadas pelo outro irão se partir em pedaços e o homem conseguirá se libertar.
Acredita-se que esse valor prático tenha contribuído para a popularidade do Sutra de Avalokitesvara (corriqueiro tanto na roma independente quanto como parte do Sutra do Lótus) nas rotas das caravanas da Ásia central.
A mais famosa de todas as práticas invocatórias no budismo de tradição Mahãyãna é sem dúvida a de evocar o nome do Buda Amitãbha. Na verdade, o equivalente japonês do termo nien-fo é nembutsu, que serve, em seu uso normal, para invocação unicamente desse Buda: Amitãbha é o Buda da Luz Imensurável, ou o Buda da Vida Imensurável (Amitãyus), cujos votos são apresentados no Sutra de Sukhãvativyuha. O ponto essencial enfatizado pelos devotos chineses e japoneses que pertencem a essa tradição é o de que os que invocam seu nome por meio da fórmula Namo-Amito-fo (chinês) ou Namu Amida Butsu (japonês) com a mente cheia de fé sincera irá renascer na Terra Pura, no quadrante oeste, que não apenas é agradável em si mesma, mas também é um lugar onde certamente se alcançará o nirvana final.
Como essa prática era disseminada nos primórdios da escola Mahãyãna pode ser ilustrado pelo Sutra dos Nomes do Buda (T 14, 114, nr. 440, Fo ming ching), que contém centenas dessas fórmulas destinadas a muitos desses diferentes budas. A prática também foi transposta para a devoção centrada em sutras, como se observa na concentração dirigida para o título do Sutra de Lótus, na fórmula chinesa Namo miao fa lien hua ching, mais tarde amplamente comum no Japonês como Namu myõhõ rengekyõ. A função de todos esses dispositivos meditacionais está em fornecer um símbolo claro e facilmente pronunciavel para o que é considerado como o ponto fundamental de rivalidade entre as várias alternativas, o espírito dos sutras da primitiva tradição Mahãyãna exige que elas sejam vistas como essencialmente equivalentes entre si. Numa obra do adepto chinês do budismo da Terra Pura, Shan Tao (613-681), intitulado Kuan nien fa men, a evocação do nome do Buda Amitãbha está intimamente vinculada à visualização (kuan) do mesmo Buda, como um exercício independente. Isso não é de surpreender, uma vez que o terceiro dos sutras, fundamental para a tradição budista da Terra Pura, é intitulado Kuan wu liang shou ching, isto é, “Sutra da Visualização do Buda da Vida Imensurável”. Embora o nome em sânscrito tenha sido reconstituído por alguns como Sutra de Amitãyur-dhyana, não chegaram até nós textos com esse nome nem com esse mesmo conteúdo. Nem também diana necessariamente envolve o sentido específico de ver que é transmitido pelo caractere chinês kuan. De fato, esse sutra é nada menos que uma orientação meditacional sobre como ver ou visualizar o Buda Amitãyus (identificado com Amitãbha). Ele pertence a uma classe de sutras que provavelmente foram desenvolvidos próximo ao final do século IV d.C., entre os quais estavam, entre outros, um sutra que falava da visualização do bodisatva Samantabhadra (T 9.389, nr 277), em geral associado ao Sutra de Lótus, e um outro sutra sobre a visualização de Bhaisajyarãja e Bhaisajyasamudgata (T 20.660, nr. 1161), ambos associados à cura. Essas meditações se baseiam na capacidade geral da maioria das pessoas de banir impressões óticas e depois evocá-las novamente. Isso se aprende, por exemplo, ao se observar o sol que se põe repousando como um tambor no horizonte oeste e depois fechar-se os olhos, evocando a imagem, o que em pouco tempo se imagem a ser evocada é primeiramente descrita por meio de iconografia e descrição verbal. Para a visualização de um Buda, a pessoa é auxiliada pelo fato de sua própria mente possuir, de forma latente, as trinta e duas características por meio das quais o Buda é identificado. Assim, de um lado, o Buda visualizado é uma projeção da própria mente da pessoa que medita e, de outro, ele nada mais é que uma forma do corpo do Darma que é idêntica em todas as suas ocorrências, e assim, pode reaparecer sempre que as circunstâncias forem favoráveis.
A veneração dos próprios sutras era amplamente disseminada no período inicial da tradição Mahãyãna. Ela surgiu em resultado da prática de se colocar sutras nos stupas, nos quais anteriormente se preferia colocar as relíquias dos budas. Sem dúvida, essa substituição era incentivada pela escassez de relíquias, mas também demonstrava identidade dos dois (ef. Sutra de Lótus, capítulo 10). A veneração do sutra é uma marca da natureza de bodisatva:
Se existe um homem que receba e mantenha, leia e recite, explique ou copie por escrito um único gãthã do Livro Sagrado da Flor do Fino Darma, ou que olhe com veneração para um rolo em que está inscrito esse texto como se fosse o próprio Buda, ou que faça a ele diversas oferendas em perfumes florais, colares, incenso em pó, cremes perfumados, queima de incenso, dosséis e estandartes de seda, roupas ou música, ou mesmo recolha folhas de palmeira em adoração reverente a ele […] saiba-se que esse homem ou qualquer outro como ele já terá feito a oferenda a dez miríades de budas dos tempos antigos e recebido uma grande promessa na presença desses budas […] Essa pessoa deve ser vista como glorificada por todos os mundos, espargida com as oferendas próprias àquele que Assim se Tornou Um […] Essa pessoa é emissária daquele que Assim se Tornou Um, enviada por aquele que Assim se Tornou Um, estando a serviço daquele que Assim se Tornou Um.
Essas práticas de veneração dos sutras continuam a ser exercidas até hoje e constituem a dimensão mais importante da espiritualidade budista na tradição Mahãyãna, inclusive no contexto do budismo leigo. Uma das raízes da proliferação de seitas em meio ao budismo Mahãyãna está no fato de que a maioria de seus sutras contém uma passagem em que ele se declara como o sutra supremo e soberano, que merece ser venerado acima de tudo.
Todas essas práticas acima descritas podem ser consideradas como parte de uma aplicação geral do budismo religioso que ligava o fiel mais simples ao praticante mais adiantado. O veículo essencial dessa gama de experiências coordenadas de uma nova forma era o ideal do bodisatva. O budismo primitivo considerava o abandono da vida doméstica como um pré-requisito para o verdadeiro progresso na busca do nirvana e deixava aos que permaneciam em seus lares a possibilidade de observar uma moralidade elementar e sustentar e venerar os monges. O mahãyãna, ao contrário, convidava a todos a trilhar imediatamente a ampla escala do progresso espiritual, com seus muitos estágios eparadas para repouso. Assim, o ato religioso mais humilde, a mais leve inclinação da cabeça, a oferenda de uma única flor em meio a pensamentos que divagam, coloca a pessoa num caminho incomparável, que conduz à salvação de miríades de outros seres e, em última análise, ao nirvana final (Sutra do Lótus, capítulo 2). A primeira das seis perfeições a ser cultivada por um bodisatva pode ser considerada uma outra ilustração disso. O termo sânscrito para ela é dãna e significa “dádiva”, “doação”, ou o efeito da qualidade da generosidade. Essa perfeição pode ter início com o simples ato de colocar um pouco de arroz na tigela de um monge, mas pode chegar ao sacrifício de partes do corpo ou da própria vida ao bem-estar dos outros. O exemplo mais famoso dela é a história do príncipe que cortou o próprio pescoço para que sua carne pudesse ser devorada por uma tigresa e sua ninhada (Sutra da Luz Dourada, capítulo 18). O sutra declara que o príncipe era ninguém mais que o próprio Buda numa existência anterior, isto é, quando ele se encontrava num estágio avançado como bodisatva.
A exemplificação da atitude do bodisatva na vida de personagens leigos em posições superiores é na verdade um tema comum nos sutras. Nesse aspecto, é especialmente digno de nota o Sutra de Srimãlã, que celebra não apenas a virtude de uma rainha, mas também sua compreensão de ensinamentos da doutrina Mahãyãna. Entre eles estão tema como a doutrina do único veículo (ekayãna) transcendendo a diferença temporária entre o Hinayãna e o caminho do bodisatva, e o ensinamento da natureza búdica de todos os seres. Este último, que em princípio adota uma posição não diferente da expressa no Sutra do Nirvana, é apresentado em termos do Ventre do Tathãgata (tathãgatagarbha), no qual todos os seres podem ser igualmente descobertos. A suposição de que todo ser é de forma latente – isto é, já mais que potencialmente – um Tathãgata, aliada à projeção de uma personagem leiga do sexo feminino como alguém que compreende isso, sugere uma subversão da distinção tradicional entre o monge e o devoto leigo. A nova espiritualidade é exposta de um modo extremamente elaborado no Sutra de Vimalakirti, que expõe os princípios gêmeos da existência de um bodisatva: a sabedoria e a compaixão. Mañjusri, o interlocutor de Vimalakirti no diálogo, é considerado como a encarnação da sexta perfeição, a sabedoria, o prajñãpãramitã, enquanto a compaixão é encenada na história da doença de Vimalakirti, por meio da qual ele compartilha da doença de todos os seres vivos. Embora alguém que não se afastou da vida doméstica, Vimalakirti não se vê limitado pelas coisas que estão associadas a ela: para demonstrar o vazio das coisas, ele pode esvaziar a casa de seus conteúdos, por meio de magia. A posição que Vimalakirti alcança é a da identificação dos opostos, aplicada em particular à atitude dos monges e à atitude dos leigos. O fato de que a frase chinesa tsai chia ch’u chia, “levar uma vida doméstica é abandonar a vida doméstica”, tenha sido incorporada aos dicionários não especializados é uma indicação de como essa ideia é bem acolhida na China. Seu significado pode ser percebido com a explicação por meio da qual R. H. Mathew fornece sua tradução: “adorar o Buda silenciosamente no coração é tão bom quanto deixar o lar para se tornar um sacerdote”, embora isso não reflita a dimensão de paradoxo na atitude de Vimalakirti.
A Herança Mahãyãna
Embora existam enormes discrepâncias entre os diferentes sutras da tradição Mahãyãna, isso se deve em especial à elaboração independente dos temas específicos. Esse fato por sua vez levou a um delineamento das escolas e, a longo prazo, ao crescimento do que são na verdade denominações, e mesmo seitas, que atualmente conhecem muito pouco os textos preferidos pelas demais. Apesar da tendência resultante a serem únicos em alguns aspectos, não existem realmente contradições importantes entre os sutras da tradição Mahãyãna em si próprios. Eles apresentam uma variedade de sensibilidade e práticas religiosas concebidas de forma extremamente generosa tanto para monges quanto para devotos leigos. Não é de admirar que a distinção entre ambos viesse a ficar ainda mais embaçada com a aceitação do sacerdócio de pessoas casadas na maioria das escolas do budismo japonês.
A chave dessa coerência na diversidade pode ser vislumbrada sobretudo em quatro dos cinco conceitos que servem de guia. Em primeiro lugar, ela pode ser encontrada no novo universalismo, que se enraíza em última análise na equivalência de todos os darmas, e assim, de todos os seres vivos, em seu vazio, em sua qualidade essencialmente nirvânica, ou em sua natureza búdica. Essa qualidade fundamental das coisas pode ser percebida na prática de prajñã. Mas, igualmente, os bodisatvas conhecem toda a miríade de fatores da experiência, superiores e inferiores, em suas características diferenciadoras. Assim é essencial desenvolver a habilidade de lidar com todos esses fatores de tal forma que o Darma seja expresso, mas os seres vivos, em especial os que adentraram o caminho do bodisatva, não fiquem presos rigidamente neles. Isso se consegue com a prática de upãyakausalya. Para o bodisatva com menos experiência, esse é essencialmente um processo de aprendizado. Para o bodisatva mais experiente, isso se torna uma questão de intervenção compassiva para assistir os outros (karuna). Por que um bodisatva iria querer adiar o nirvana final e retornar para atos de compaixão? A resposta a essa questão, nunca feita nos círculos budistas, é simplesmente que seria incoerente com a percepção da natureza búdica de todas as coisas o bodisatva conceber o alcançar o nirvana como um processo individual e diferenciado. Aqui se encontra a combinação secreta entre a visão irreversível e o empreendimento de salvação que caracteriza a espiritualidade dos sutras da tradição Mahãyãna.
Esses temas subjazem às formas específicas que o budismo Mahãyãna adotou em todo o Leste asiático e, mesmo assim, eles não são dependentes de qualquer ensinamento de alguma seita ou crença. As concepções essenciais e o tipo de experiência que eles inspiram são acessíveis tanto no interior dos contextos religiosos tradicionais quanto fora deles e, cada vez mais, tanto dentro quanto fora das formas de cultura asiáticas. Onde as pessoas de hoje são individualistas, anárquicas e se encontram desenraizadas, o budismo Mahãyãna as convida à interdependência, à compaixão e à auto-reflexão .Onde o preconceito e a categorização rígida predominam, o budismo Mahãyãna conduz à flexibilidade e à libertação. Esses dois aspectos complementam-se reciprocamente, pois ambos se fundam na percepção unificadora do vazio. Nesse nível, o budismo Mahãyãna se revela como uma reafirmação autêntia do budismo primitivo e de forma alguma deixa de estar em sintonia com a tradição Theravada. Quando se pratica a consciência do vazio, as limitações dos pontos de vista fixos e discriminatórios cedem lugar à libertação. Amo mesmo tempo, perde força o apego que surge com a ilusão do eu.
valdir dos reis says:
17/03/2015 at 12:06 pm -
Luz
Ezequiel says:
28/12/2015 at 1:45 pm -
Grande texto. Obrigado.