por Reverendo Ryuei MCCormick
Anteriormente nesta série de textos* vimos o ichinen sanzen, “três mil mundos em um único momento de pensamento”, em geral como aquilo que é percebido através da prática da concentração e do insight ou como aquilo que é realizado através da prática do Odaimoku. Agora, verificaremos os componentes do ichinen sanzen, para que possamos ter pelo menos uma pista conceitual e alegórica do que nossa prática do budismo nos permite perceber, e que está contido em nossas vidas.
O melhor lugar para começarmos é com os dez mundos e sua posse mútua. Os dez mundos enumeram dez maneiras diferentes, de acordo com o budismo, de como que os seres sencientes experimentam tais dez mundos em suas vidas e seus ambientes. Tradicionalmente, estes mundos são interpretados como reinos reais nos quais podemos nascer (ou pelo menos nos tais seis reinos inferiores). No entanto, os reinos sempre foram também vistos como representações de estados de espírito, que todos nós experienciamos em menor ou maior grau em nosso cotidiano. Atualmente, os budistas estão menos propensos a manter uma interpretação literal desses dez mundos, e estão mais propensos a aderir a uma perspectiva mais psicológica. Contudo, diz-se que de vida em vida e mesmo de um momento para o outro, experimentamos a vida com pontos de vista e atitudes drasticamente diferentes, que surgem com base em nossas próprias ações e reações mentais, físicas e verbais habituais diante das eventualidades da vida. Verificando os dez mundos, espero que fiquemos um pouco mais autoconscientes e capazes de superarmos nossas tendências habituais impensadas, e nos capacitarmos a tomar mais responsabilidades por nós mesmos e por nossos meios ambientes em vez de culparmos os outros por nossos “destinos”.
Os seis mundos inferiores abrangem os estados tradicionais de transmigração: os infernos, os fantasmas famintos, os animais, os demônios lutadores, a humanidade, e os céus. Cada um destes reinos já deve ser do conhecimento de todos nós. Presumivelmente, todos os leitores deste texto são seres humanos, então, esse é um dos reinos, o dos humanos. O reino dos animais também é conhecido por todos nós. E quem não cresceu ouvindo histórias de fantasmas, ou ouvindo de que o céu e inferno nos esperam após a morte, dependendo de como nos comportamos nesta vida? Quanto à luta dos demônios, muitos de nós já ouviram histórias de uma “guerra no céu” entre os leais anjos de luz e os demônios orgulhosos e arrogantes que tentaram usurpar o trono celestial. Para o budismo, no entanto, nenhum desses estados ou reinos são considerados permanentes. Mesmo os céus e infernos são estados temporários da existência, e todo ser senciente, presumivelmente já renasceu em um estado após o outro, dependendo de seu equilíbrio cármico, ou seja, a soma total de seus atos auspiciosos e prejudiciais. Aqueles que transitam por esses dez mundos, geralmente são levados pela ignorância da lei de causa e efeito, e por não perceber que não encontrarão nenhuma felicidade permanente entre posses e relacionamentos transitórios nos mundos inferiores. Porém, na medida que continuam tentando lidar com isso, eles se mantem afundando em estados de sofrimento ou ascendendo temporariamente em de estados relativamente prazerosos.
Os quatro mundos superiores fornecem uma escapatória para tudo isso. Na verdade, estes não são mundos, nem são estados de renascimento como são os seis inferiores. Os quatro mundos superiores são estados crescentes do discernimento e da compaixão. Os dois primeiros compreendem o que o Budismo Mahayana chama de os Dois Veículos do Budismo Hinayana : os Ouvintes da Voz (sravakas) que ouvem as palavras do Buda, os ensinamentos sobre as Quatro Nobres Verdades, e se esforçam para segui-las, e os Budas Particulares (pratyekabuddhas) que obtém uma visão sobre o funcionamento das causas e condições de todos os fenômenos por conta própria. Visto que aqueles nos Dois Veículos superam uma certa quantidade de ignorância e transcendem os seis mundos inferiores, eles ainda mantêm um egoísmo sutil, pois, estão principalmente preocupados apenas com sua própria libertação, e não estão motivados ou não são capazes de ensinar os outros. O próximo estado é o dos Bodhisattvas que percebem o vazio de todos os fenômenos e estão preocupados com a libertação de todos os seres e não apenas deles mesmos. Os Bodhisattvas fazem votos de atingir o estado de Buda para o bem de todos os seres independentemente de quanto tempo leve, ou dos sacrifícios que eles devem fazer pelos outros. Finalmente, há o estado de Buda, em que há um completo despertar para a verdadeira natureza da realidade e uma compaixão sem limites para usar meios hábeis, que conduzam todos os seres a libertação.
Juntos, estes reinos compõem os dez mundos. Muitos budistas Mahayana consideravam esses dez mundos como estados separados da existência, cruzados somente pela morte e pelo renascimento. Particularmente, conseguir entrar em um dos quatro mundos superiores era visto como um meio de eliminar os seis mundos inferiores. O Grande Mestre T’ien-t’ai, no entanto, não via essas coisas de forma tão simplista. Ele ensinou que esses dez mundos mutuamente se mesclam. Aqueles que estão nos mundos inferiores contêm os mundos superiores em potencial e podem alcançá-los através da aspiração e cultivo intencional de suas boas qualidades inerentes. Aqueles que estão nos mundos superiores acolhem os mundos inferiores em virtude de sua compaixão e capacidade de continuar a se manifestar solidariamente neles como guias úteis. Os Bodhisattvas e Budas em particular são conhecidos por fazerem isso. Os Ouvintes da Voz e os Budas Privados podem não enxergar esta ligação contínua entre os dez mundos, mas, essa ilusão é temporária, e eventualmente, de acordo com T’ien-t’ai, eles perceberão que seus Dois Veículos são na verdade parte do Veículo Único, que conduz à prática do Bodhisattva e ao estado de Buda.
Nichiren Shonin enxergou a doutrina da posse mútua dos dez mundos como revolucionária. Para ele isso significava que todo ser humano tinha o mundo do estado de Buda dentro dele e que o Buda abraçava todos os seres sem exceção. No Kanjin Honzon Sho ele relata como todos os seis mundos inferiores se manifestam nos seres humanos comumente :
“Como muitas vezes olhamos uns para os rostos dos outros, notamos que nossa expressão facial muda de tempos em tempos. Às vezes está cheia de deleite, raiva ou calma; mas outras vezes muda para ganância, ignorância ou bajulação. A raiva representa os infernos, ganância os fantasmas famintos, ignorância os animais, bajulação os demônios combatentes , deleite, representa os céus, e a calma representa a humanidade. Assim enxergamos os seis mundos ilusórios no semblante das pessoas, desde os infernos aos céus. Todavia, não podemos ver os quatro mundos superiores, que estão escondidos dos nossos olhos. No entanto, também podemos ser capazes de vê-los, se os procurarmos com cuidado.”
Mais adiante, Nichiren comenta sobre os Ouvintes da Voz, Budas Particulares e Bodhisattvas:
“Vemos o princípio da impermanência em todos os lugares diante de nossos olhos. Nós humanos entendemos esse princípio, através do qual dois grupos de sábios do Hinayana, chamados de Ouvintes de Voz e os Budas Privados tentam alcançar a iluminação. Como podemos alegar que esses dois mundos não estão incluídos no mundo da humanidade? Um homem, não importa o quanto insensível ele possa ser, ama sua esposa e filhos. Isto mostra que ele está parcialmente no mundo do Bodhisattva.”
Finalmente, Nichiren chega ao ponto, que o próprio estado de Buda está dentro das nossas vidas:
“Antigos governantes chineses, sábios como Yao e Shun, tratavam todas as pessoas igualmente com compaixão, provando a existência do mundo dos Budas, pelo menos uma parte dela, dentro do mundo humano. O capítulo 20º do Sutra do Lótus, “Bodhisattva Jamais Desprezar”, descreve como aquele bodhisattva juntava as mãos (gassho) em respeito e se curvava a qualquer um que ele conhecia, porque ele sempre via um Buda na pessoa. Nascido no mundo humano, Príncipe Sidartha cresceu para se tornar o Buda Shakyamuni. Esses exemplos devem ser suficientes para convencê-los de acreditar que o mundo dos Budas existe no mundo humano”.
Nichiren acreditava que esta parte do ichinen sanzen era bastante importante e que muitas vezes, ele parece usar o termo “posse mútua dos dez mundos” alternadamente com o termo “ichinen sanzen.” Portanto, não podemos subestimar o significado que esta doutrina tinha para ele. No Budismo Nichiren, o Odaimoku (NaMuMyoHoRenGeKyo) é a chave verbal para desbloquear o tesouro do estado de Buda, e naquilo que o ensinamento de ichinen sanzen insiste já fazer parte da totalidade de nossas vidas, a totalidade que é ichinen sanzen e a posse mútua dos dez mundos.
Texto original publicado no Nichiren Shu News em agosto de 2004.
Tradução da Sangha Hokekyoji Nichiren Shu Brasil em fevereiro de 2022.
*Textos em questão:
1. Os Três Mil Mundos em um Único Momento de Pensamento
2. Prática Meditativa e Odaimoku
free vector
No Comments to "A Posse Mútua dos Dez Mundos"