por Reverenda Myokei Caine-Barrett
No Kaikyoge que recitamos diariamente, estão as palavras: “Honra ao Sutra da Flor de Lótus do Dharma Maravilhoso, o ensino da igualdade, a grande sabedoria, o veículo único”. Esta frase fala do grande significado do Sutra de Lótus. No mundo atual, é um significado que não pode ser ignorado. Muitas vezes me pergunto quantos de nós realmente consideram o que estamos recitando ou se simplesmente recitamos essas palavras sem pensamento ou intenção. O que significa chamar o Sutra de Lótus de ensino da igualdade ? Que aplicação prática isso tem nas nossas vidas e na vida alheia? Quando penso no Sutra de Lótus como o ensino da igualdade, uma passagem muito contundente e singular no capítulo 5, O Símile das Ervas, me vem à mente:
“Eu vejo todos os seres vivos igualmente. Não tenho parcialidade para eles.
Não existe este ou esse para mim. Transcendo o amor e o ódio.
Não me apego a nada. Não sou impedido por nada.
Eu sempre exponho o Dharma para todos os seres vivos igualmente.
Exponho o Dharma a muitos, da mesma maneira que para um.
Sempre exponho o Dharma. Eu não faço mais nada.
Não me canso de expor o Dharma enquanto vou ou venho ou me sento ou fico em pé.
Exponho o Dharma a todos os seres vivos. Assim como a chuva molha a terra inteira”.
Lembro-me de que minhas mãos e boca, se tornam as mãos e a boca de Buda, sempre que seguro o Sutra e recito estas palavras. Estou consciente de que meu coração deve responder da mesma maneira como o Buda quando eu ando no mundo, porque sou praticante, alguém que aspira à iluminação. Minha conduta deve estar de acordo com os quatro grandes votos que recitamos diariamente.
Nas últimas décadas, vários movimentos criaram mudanças positivas ao redor do mundo, aumentando a visibilidade e o reconhecimento de grupos anteriormente desprivilegiados. Para as mulheres, as vitórias foram agridoces, pois se depararam com uma reação retrograda crescente de redução de ganhos conquistados com muito esforço. Existe, no entanto, um reconhecimento crescente, que as nações não podem prosperar, se metade da população é excluída da educação e trabalho ou tomada de decisão.
As mulheres hoje em dia consideram seu status com apreensão. Porém, elas não sofrem as mesmas limitações impostas às mulheres da época de Nichiren Shonin. Normas e costumes sociais projetados para manter as mulheres em espaços limitados foram os cinco obstáculos, as três obrigações e as oito regras.
Apesar da inclusão na sangha desde a época do Buda, as mulheres eram vistas como incapazes de atingir o Estado de Buda, porque eram “incapazes de se tornar o Rei Celestial de Brahma, Indra, rei dos demônios (rei Mara), rei nobre que gira a roda e Buda” (do Nyonin Gosho, uma coleção de cartas de Nichiren Shonin para seguidores do sexo feminino). As mulheres também estavam sujeitas aos “três vínculos (a moral confucionista de que deveriam obedecer aos pais em casa, aos maridos quando casadas e aos filhos quando viúvas”. As oito regras foram especificamente dirigidas às freiras e sua conduta junto aos monges. Algumas dessas limitações permanecem em vigor até hoje em várias sociedades ao redor do mundo e ditam como as mulheres devem praticar como budistas.
Nichiren escreveu no Shijo Kingo-dono Nyobo Go-hji: “Lendo todas as escrituras budistas, além do Sutra de Lótus, não quero ser mulher. Alguns sutras dizem que as mulheres são mensageiras do inferno, outros sutras dizem que as mulheres são como uma serpente ou uma árvore dobrada, enquanto outros ainda dizem que suas sementes do Estado de Buda são torradas”. Nichiren Shonin definitivamente compreendeu as limitações dos tempos e os encargos extras impostos à capacidade das mulheres de praticar o budismo como consequência.
Nichiren Shonin era um feminista prático e sua orientação era moderada por seu conhecimento dessas limitações. Ele incentivava as mulheres, não abandonando ou quebrando a tradição, mas encontrando maneiras de atuar dentro das normas, para que as mulheres pudessem alcançar a iluminação. Isso deu as suas seguidoras um forte apoio a seus esforços pessoais para enfrentar os desafios de suas vidas. Concebo essa maneira de Nichiren, como empoderamento, uma maneira de dizer às mulheres seguidoras: “Você é capaz. Nunca desista. Continue desafiando a si mesma”.
Embora não possamos agora conhecer seus nomes e histórias pessoais, as cartas no Nyonin Gosho são instrutivas e podem dar apoio as mulheres no avanço da sua fé e em suas vidas. Podemos facilmente nos colocar no lugar dessas mulheres. A coragem que Nichiren Shonin elogiou e inspirou nessas mulheres revela resiliência e vontade de desafiar a si mesmas.
Temos sorte que Nichiren Shu ordenou um número significativo de mulheres. Talvez até vejamos uma abadessa de Minobu algum dia ! Talvez não durante a minha vida, mas, sei que as mulheres têm feito e continuam a dar grandes contribuições à nossa ordem. Vamos juntas explorar suas contribuições nos próximos meses.
Gassui Gosho, uma carta sobre menstruação, achada no Nyonin Gosho, é uma revelação tanto por seu tópico quanto pelo que revela sobre Nichiren Shonin e o Sutra de Lótus. Isso mostra como francamente as mulheres procuravam seus conselhos sobre questões íntimas em suas vidas. O nome do destinatário desta carta é desconhecido, mas, a resposta bem-ponderada e completa de Nichiren Shonin revela um respeito por suas seguidoras que permanece relevante até hoje.
A carta aborda duas questões principais. O primeiro é o que recitar. A resposta de Nichiren Shonin está fundamentada no Sutra de Lótus: “Você pode recitar os vinte e oito capítulos inteiros, um capítulo, um parágrafo, uma frase ou mesmo um caractere do Sutra de Lótus por dia. Ou, você pode recitar Odaimoku, Namu Myoho Renge Kyo, apenas uma vez por dia ou uma vez em toda a sua vida. Ou, você pode se alegrar com outras pessoas que se alegram ao ouvir uma voz recitando Odaimoku. ”
Essa resposta esclarecida contrasta com a de líderes religiosos rigorosos que ditam como as seguidoras devem viver e praticar. Nichiren Shonin não é dogmático. Seu raciocínio baseado no sutra delega a maneira de praticar para a praticante. A praticante pode, então, seguir seu coração e escolher passagens que lhe sejam relevantes. Isso capacita e aproxima a praticante da prática. Essa flexibilidade torna o Sutra de Lótus verdadeiramente acessível. Também gera intimidade com a totalidade do Sutra de Lótus e mostra a importância dos fundamentos da fé.
Nichiren Shonin escreveu mais tarde: “Você deve saber que o mérito do Sutra de Lótus é o mesmo, se você recita os oito rolos inteiros ou apenas um rolo, um capítulo, uma estrofe, uma frase, um caractere ou Odaimoku. Um caractere do Sutra de Lótus é como essa gota de água do oceano ou uma joia que realiza desejos. O Sutra de Lótus tem inúmeros méritos. Portanto, você pode recitar livremente qualquer um dos seus capítulos”.
Nichiren lembra a praticante que o Sutra de Lótus é “o verdadeiro ensinamento do Buda Shakyamuni” com inúmeros méritos. Suas referências a mulheres ilustram a profunda consciência de Nichiren Shonin sobre a natureza difícil da prática de uma mulher. Ele elogia a fé de sua seguidora no Sutra de Lótus, apesar de ter “nascido uma mulher vinculada aos cinco obstáculos e aos três laços”.
Nichiren Shonin continuou: “Acima de tudo, o capítulo 2, Meios Expedientes e o capítulo 16, Duração da vida de Buda, são os capítulos mais dignos. Os outros 26 capítulos são como galhos e folhas desses dois. Portanto, você deve recitar todos os capítulos 2 e 16 para os serviços diários. Você também pode praticar escrevendo esses dois capítulos”.
“Os capítulos 12 e 23 pregam a conquista do estado de Buda pelas mulheres, mas, o capítulo 12 é um ramo do capítulo 2 e o capítulo 23 é um ramo do capítulo 16. Portanto, recomendo que você recite os capítulos 2 e 16 diariamente e os outros capítulos às vezes, quando tiver tempo livre”. Esta carta é rica em tais passagens na prática. Sua recomendação não é uma postura doutrinária; é uma resposta específica a uma profissional em particular. Também molda nossa prática como um sangha mundial. A passagem também nos ajuda a entender a escolha desses capítulos como uma forma padrão.
A segunda pergunta é sobre a prática durante a menstruação. Nichiren Shonin respondeu: “Esta é a angústia de toda mulher, que muitas pessoas tentaram responder no passado. Não consigo pensar em nenhum sutra ou discurso mostrando aversão à menstruação. Acredito que menstruação não é a impureza vinda de fora, mas, um fenômeno fisiológico peculiar para as mulheres e é indispensável para continuar a raça humana “.
Nichiren Shonin é sincero sobre as normas sociais vigentes. Ele descreve a doutrina de Zuihobini ou adaptação de preceitos a uma localidade, que especifica que “não devemos ir contra as maneiras e costumes do país, a menos que isso signifique uma violação grave dos preceitos budistas”. Em seguida, ele declara que seria uma violação para uma mulher, deixar de lado sua prática durante a menstruação. Ele diz que aqueles que aconselham contra a prática durante o ciclo da mulher pretendem “quebrar sua verdadeira fé” e a forçar “cometer o pecado de abandonar o verdadeiro dharma, dizendo que praticar o Sutra de Lótus durante a menstruação significa mostrar desrespeito ao sutra”.
Nichiren Shonin tem conselhos de bom senso quanto a prática. Ele poderia ter dito para se abster de praticar e seguir os costumes locais. Em vez disso, Nichiren Shonin responde com profundo respeito por sua seguidora e gratidão por sua fé. Ele honra a dificuldade de praticar o Sutra de Lótus, junto com as dificuldades específicas da prática de uma mulher. Ele a lembra dos inúmeros méritos resultantes dessa prática. Estas são as “poucas palavras de alegria” para incentivar uma prática regular. Estas palavras nos servem hoje também.
(*) Artigo publicado no Nichiren Shu News em junho e agosto de 2014 e traduzido pela Equipe de Tradução da Nichiren Shu Hokekyoji Brasil em junho de 2020.
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