Por Reverendo Ryuei McCormick

No artigo anterior desta série, discorremos sobre os dez mundos e a posse mútua dos dez mundos. Esses dez mundos consistem em seis mundos inferiores, que não são mundos como tais, mas sim estados de manifestações, através dos quais, os seres senscientes passam constantemente de vida em vida ou mesmo de momento a momento. Os quatro mundos superiores são os estados daqueles que alcançaram algum grau de despertar para a verdade, ou até mesmo o pleno e completo despertar. Então, pode ser útil revermos esses mundos novamente como traços de caráter daqueles que dizem estar nos mundos superiores:

Os seis mundos inferiores consistem nos habitantes do inferno, os fantasmas famintos, animais, demônios lutadores, a humanidade e os seres celestiais. O habitante do inferno é aquele obcecado com seu próprio sofrimento e com a exclusão de tudo o mais. É um estado caracterizado por angústia intensa, que ataca com raiva impensada, autopiedade, desespero e autodestruição. O fantasma faminto é aquele obcecado pela satisfação de desejos insaciáveis. É um estado de dependência ou fixação autodestrutiva onde o próprio desejo tornou-se uma incessante fonte de sofrimento. O estado dos animais é um pouco melhor, mas, é um estado em que se procura apenas gratificação imediata e ganhos de curto prazo, e é indiferente às consequências. O demônio lutador é aquele dominado pelo orgulho, arrogância e competição, e é obcecado com a ideia de que alguma outra pessoa possa ficar à sua frente ou ter mais do que ele tem. O estado de humanidade é um estado de interesse próprio, mais bem definido, capaz de aplicar a razão e perspicácia para obter seus objetos de desejo. Os humanos raciocinam e pelo menos aspiram a um padrão ético de conduta. O estado celestial é de um contentamento passageiro daquele que obteve ainda que temporariamente seu objeto de desejo, seja material ou espiritual. Entretanto, também é um estado propenso à complacência, autossatisfação e mesmo autojustiça, e não é mais duradouro do que os outros estados.

Os quatro mundos superiores consistem em os ouvintes da voz, budas por conta própria, bodhisattvas e Budas. Os ouvintes são aqueles que ouvem, prestam atenção e praticam os ensinamentos de Buda. Os budas por conta própria são aqueles que simplesmente olham para coisas como elas são. Os bodhisattvas são aqueles que estão cheios de compaixão pelos outros. Os Budas, os despertos, são aqueles que enxergam que além de nascimentos e mortes e de todo sofrimento, há uma paz e alegria subjacentes e nada precisa ser adicionado ou tirado. Eles enxergam a verdadeira natureza da realidade que é Não Nascida, Imortal.

Como discorrido anteriormente, estes dez mundos se completam entre si. Os mundos inferiores contêm os maiores como potenciais dentro deles mesmos, e os superiores contém os inferiores num engajamento compassivo com estes. O Grande Mestre T’ien-t’ai acreditava que os dez mundos eram capazes de interagir desta forma, porque, em última análise, não eram dez mundos separados ou estados de ser, mas dez maneiras diferentes de expressar as causas e condições que compõem tudo isso. Esse fluxo causal subjacente é o que une todos os dez mundos e permite que eles se contenham mutuamente e fluam de um para o outro. O Grande Mestre T’ien-t’ai identificou a passagem das “dez talidades (qualidades tais como são)” na primeira seção em prosa no Capítulo 2º do Sutra do Lótus, como uma descrição de dez aspectos do processo de transformação interdependente, que se manifesta em todos os dez mundos. A passagem, recitada regularmente como parte da prática diária dos budistas Nichiren, é a seguinte:  

“Somente os Budas alcançaram a verdade suprema, isto é, a realidade dos fenômenos em relação às suas aparências como tais, suas naturezas como tais, suas entidades como tais, seus poderes como tais, suas atividades como tais, suas causas primárias como tais, suas causas ambientais como tais, seus efeitos como tais, suas recompensas como tais, e a sua igualdade como tal, apesar destas diferenças.”

Sutra do Lótus, Capítulo 2

Então, o que exatamente são esses dez aspectos? Em geral, são um meio de destacar e valorizar o dinamismo e contingência dos fenômenos que compõem os dez mundos. Nada é simplesmente o que é. Tudo é temporário, dependente de muitos fatores e  trocas nas relações internas e externas. Vejamos agora cada um dos dez aspectos:

A aparência é externa ou aspecto objetivo dos fenômenos. Aquilo que é visto, ouvido, cheirado, tocado ou provado está incluso neste aspecto. Aparência envolve a maneira de como experienciamos as pessoas, os lugares, as  coisas, e presenciamos eventos em termos de sentidos físicos. Por exemplo, alguém pode se recordar da beleza de uma flor de lótus.

A natureza é o interior ou aspecto subjetivo dos fenômenos. Este aspecto centra-se na forma como os pensamentos, sentimentos, memórias e associações internas que colorem tudo o que experienciamos, inclusive a nós mesmos. Por exemplo, quando muitos budistas veem uma flor de lótus, eles podem ficar indiferentes muitas vezes. Mas, podemos pensar na flor de lótus como o assento dos Budas ou como um símbolo do despertar devido a associações passadas da flor de lótus com essas coisas.

Entidade é o aspecto que aponta para a integração total e permanente dos dois primeiros aspectos. Tudo o que experienciamos é uma composição de impressões sensoriais externas e impressões subjetivas internas. Nada pode ser reduzido apenas ao seu lado objetivo ou lado subjetivo. Desta forma, a referida flor de lótus, é ao mesmo tempo uma flor e um símbolo do Dharma. Para outros, pode representar outra coisa. No entanto, sempre haverá impressões subjetivas diferentes para aqueles que a visualizam.

Poder é o aspecto da capacidade dos fenômenos de mudar e efetuar mudanças. As coisas são como são por causa do que podem ser e do que podem fazer. Contudo, este poder só entra em jogo sob determinadas causas e condições, incluindo um ato de vontade por parte dos seres sencientes, os responsáveis ​​por suas ações. A for de lótus tem o poder de trazer beleza para uma lagoa, partes dela podem ser comidas, enquanto para os budistas tem o poder de exaltar as mentes das pessoas e inspirá-las a atingir o estado de Buda.

Atividade é o aspecto que trata da mudança real. Só porque algo tem o poder de fazer ou tornar-se algo, não significa que fará ou se tornará algo. Se o “poder” descreve aquilo que se pode fazer, a “atividade” descreve aquilo que se está realmente fazendo. Uma flor de lótus florescendo seria um exemplo de algo exercendo o seu poder.

Causa Primária é o aspecto relacionado com a causa principal que gera algo. Essas causas têm suas próprias causas. Portanto, querer retroagir a causa única é algo que o budismo declara impossível. Provisoriamente, porém, as principais causas podem frequentemente ser identificadas. No que diz respeito a vida humana, pensamentos, palavras, e ações são vistas como causas primárias que se tornarão as futuras sementes de nossa tristeza, alegria ou despertar. Voltando à flor de lótus, a causa primária é obviamente sua semente.

Causa Ambiental é o aspecto que abrange as muitas causas ou condições contribuintes, que levam uma causa primária a produzir seu efeito. As causas ambientais são o solo lamacento, a água da lagoa e a luz solar que permitem que a semente de uma flor de lótus floresça.

Efeito é o aspecto que incide sobre um resultado mais imediato e óbvio, quando causas e condições provocar mudanças. É a semente criando raízes, ou o florescimento da flor de lótus em um lago lamacento.

 A recompensa é o aspecto que cobre os efeitos menos óbvios e alcança as repercussões de um evento. Quando uma flor de lótus floresce, por exemplo, ela também contém as sementes que resultarão em mais flores de lótus no futuro. Assim sendo, um único efeito define os âmbitos para muitos mais efeitos.

A igualdade é o aspecto que responde pela integração total de todos esses aspectos em um todo consistente, mas, impermanente. Quando as causas e condições mudam, o mesmo acontece com todas os outros aspectos e um novo fenômeno surge. Cada um dos aspectos se difere um do outro, porém, ao mesmo tempo, são todos iguais quando nenhum aspecto manifesta qualquer natureza ou substância permanente. Essa ausência de uma natureza fixa ou independente é a verdadeira natureza, que todos os dez aspectos apontam. Voltando a nossa flor de lótus, vemos também que ela é apenas o que é por causa de um conglomerado temporário de causas e condições, bem como relacionamentos, e, não menos importante, é a nossa própria impressão subjetiva de nomeá-la como uma “flor de lótus”.

A lição aqui é que a realidade como nós experimentamos não é simplesmente dada. Ela é o produto de um fluxo constante de causas e condições e fazemos parte desse fluxo. Nós o condicionamos e o fluxo nos condiciona. Ao despertarmos para isso, temos o poder de fazer mais escolhas eficazes, libertadoras e compassivas na vida. Em uma famosa história de ensinamento budista da China, um antigo mestre é transformado em uma raposa por quinhentas vidas, porque ele erroneamente ensinou que os despertos estariam livres da causalidade. Ele é libertado disso, quando um professor chamado Paichang (720-814) lhe diz que os despertos não são alheios à causalidade. Dentro do Budismo Nichiren, nós não recitamos para driblar a lei de causa e efeito, mas, despertarmos para a causa da natureza de todas as coisas, ensinada aqui em termos de dez aspectos. Através da nossa fé no Sutra do Lótus e da nossa prática de Odaimoku podemos perceber que a única diferença entre um habitante do inferno e um Buda é aquilo que eles provocam na vida. Se cada momento contém três mil mundos, quais providencias devemos tomar para dispormos do melhor de todos os mundos possíveis?

(*) Texto original publicado no Nichiren Shu News de outubro de 2004.

Tradução da Sangha Hokekyoji Nichiren Shu do Brasil em março de 2022.

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